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Dr. João Evangelista
Gastro-enterologista

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Um sonho de Deus *

Era 18 de outubro. Deus dormia. Dormia e sonhava. E nesse sonho, habitava a vida. E dessa vida, surgira o homem.

Para prolongar seu sonho, Deus então criou o Médico.

Cada ser humano é um sonho de Deus. Quando Ele acorda, nós dormimos. O mistério que chamamos de morte, nada mais é do que o despertar dos sonhos de Deus.

Cada vez que alguma enfermidade perturba seu sono, surge o Médico para, afastando-a, embalar o Criador em sua sonolência.

Quando as doenças fustigam sua obra, Deus tem pesadelos. Quando a saúde dos seus filhos viceja, Ele boceja.

Bem aventurado o Médico, cujo coração ama e tem fé, na própria vida e de seus semelhantes, lutando em nome dela.

De tempos em tempos, Deus acorda. Nesse instante um ser humano irá dormir. Entrega, antes de adormecer, sua vida ao Criador. Informa para Ele, que seu Médico perdeu a batalha contra sua doença. Notifica que a morte venceu.

Deus diz que não. Pois ao criar o tempo, gerou o seu passar. E dele nasceu a tal morte, essa amante arrebatadora que persegue a vida até conquistá-la quando, inebriada de paixão, apaga a luz desse corredor para gozar sua lua de mel.

Nessa estrada também caminha o Médico. Desesperado, tenta acender cada vela que a enfermidade sopra.

E lá vai a vida, tateando na penumbra. Indecisa, já não sabe se oferece para a morte que lhe abraça, o seu coração, ou se o devolve, pelo amor sincero, ao médico de plantão!

Lá está o Médico! De olho no amor alheio, fazendo lembrar a vida, enquanto esquece a própria morte. Afinal, eles já foram considerados deuses!

Hoje, são apenas humanos.

Por serem protetores da vida alheia, pensaram que eles fossem eternos. Vivendo a própria vida, se descobriram mortais.

No fundo mesmo, eles são sobre-humanos!

Confie em mim! Lute! Tenha fé! Ele diz ao seu enfermo, termo este que significa: sem firmeza, sem equilíbrio, sem fé!

Funcionário da existência, o terapeuta tenta como pode afastar seu paciente do assédio da morte.

Mas, em dado momento, Deus, sentindo falta de um dos seus filhos, interrompe o trabalho do Doutor.

Não tem problema. Certamente um dia, sentirá também saudades do médico e ele partirá. E aí, feliz da vida, Deus voltará a sonhar. Porém, antes de dormir, espalhando a luz do seu médico amado, fará mais uma vida brilhar!


*A crônica acima não foi escrita para homenagear os terapeutas daqueles pacientes que lamentam: Que droga de médico!

Foi composta para reverenciar os doutores dos enfermos que louvam: Meu Médico, minha melhor e mais eficaz droga!

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Dor de cotovelo

Todas as vezes que eu escrevo na primeira pessoa, ou seja, falando de mim mesmo, noto que desperto um pouco de malícia no leitor. Estou começando acreditar que minhas reminiscências podem realmente conter particularidades um tanto curiosas, principalmente quando discorro sobre situações nas quais me dou mal.

Dentre as dezenas de agruras da minha vida, particularmente uma delas costuma me chamar atenção.

Tendo em vista a tendência, não muito nobre, de sempre entrar pelo cano nos meus relacionamentos afetivos, eu já acostumei ouvir meus amigos perguntarem: Como vão suas paqueras? Com quem você está terminando?

Pois bem, chafurdando na lama da dor de cotovelo, lá se encontrava eu, alguns anos atrás, aturando a velha solidão que sempre surge no final de um namoro.

Com a finalidade de me livrar desse sufocante sentimento, tratei de “enfiar o pé na jaca”, “garfando”, nas boates e barzinhos da vida, femininas criaturas que se encontravam na mesma triste e desolada situação que a minha. Fiz coleção dessas tresloucadas mariposas noturnas, mas a verdade é que nenhuma delas me agradava. Eu começava acreditar naquilo que Deus, no silêncio de suas reflexões, havia me falado quando um dia perguntei: Deus, o que é dor de cabeça?

Ora, você não sabe?! Empresta-me uma de suas costelas, que Eu te mostro!

O resultado é que durante todas as noites eu ficava sozinho em casa, e isso era uma tortura. É importante deixar claro que esse tormento também se estendia para os meus amigos, pois passava a noite telefonando para eles.

-É o Fernando?

-É.

-Aqui é o João.

-Não brinca cara, são quatro horas da matina e eu preciso acordar cedo.

Eu tentava outro:

- Nilson? É o João.

-Que é que manda?

-Estava dormindo?

-Advinha.

Eu corava de vergonha, mas o vazio do isolamento era mais forte que o vexame de acordar os amigos.

Apesar de me dizerem que essas coisas costumam melhorar com o passar do tempo, no meu caso foi se tornando mais grave. Sem comer e sem dormir, eu já não conseguia ligar para os números certos.

-É o Renato?

-Aqui não mora ninguém com esse nome.

Tentava de novo e acabava ligando para outro.

- O Rogério está?

- Vê se não enche. Aqui não tem Rogério nenhum.

Eu comecei perceber que ninguém mais queria falar comigo. Isso acabou por agravar a minha melancolia.

Apesar de começar me sentir um chato, eu telefonava para o entregador de pizza e puxava conversa. Ele pediu demissão do emprego e sumiu. O carteiro tratou de entrar de férias. O entregador de jornal se transferiu de bairro. O vendedor de água mineral se aposentou. Para resumir a história, sobrou minha empregada. O senhor não vai dormir patrão? Já são seis horas da manhã. Uma semana depois, é claro, ela pediu as contas e também foi embora.

Ciente de que nada adiantaria exaurir a paciência dos amigos com choros e lamentações, e também tentar racionalizar meu infortúnio através de piadas machistas, eu decidi procurar um psicólogo.

Doutor, quando ela me disse: Eu não te amo mais, eu ri muito. Era a melhor piada que eu já tinha ouvido. Eu ri tanto e tanto, que a casa inteira começou a sacudir, e desabou sobre a minha cabeça. E eu morri! Eu não sabia, mas ela tinha me matado na consciência dela!

Agora, se estou onde estou, quero não estar. Se não estou onde estou, quero estar. Enfim, quero sempre estar onde não estou!

Ouvindo isso, aquele exterminador de neuroses iniciou minha análise:

O senhor tem medo de barata?

-Não.

-Seus pais lhe davam carinho?

-Sim.

-Teve muitos amigos durante sua infância?

-Alguns.

-Foi preso alguma vez?

-Nunca.

-Está desempregado?

-Não.

-O senhor me parece uma pessoa normal.

Eu, quase implorando, dizia: Juro que eu não sou, doutor. Eu juro!

O psicólogo, meio perturbado, me falava: Volte na semana que vem.

O que?! De um jeitinho para me ver amanhã, doutor, eu pago o dobro.

-O senhor está louco?

-Eu não disse doutor! Eu não disse!

Daí em diante, quem não dormiu mais foi ele. Toda vez que ia me dar alta, eu caia em prantos: Só mais uma consultinha, doutor, por favor. Pra eu ficar bem curadinho.

O psicólogo já estava abatido e de olheiras, já tinha brigado com sua mulher, já havia perdido toda a clientela, já estava cheio de tiques nervosos.

Quanto a mim, á medida que os dias se foram passando, eu fui melhorando. A tão familiar alegria, sentindo minha falta, chutou o traseiro da tristeza e retornou para o meu coração. E bem verdade que, durante muito tempo, eu tive que agüentar o psicólogo me telefonando todas as noites, se queixando da ausência de seus clientes e chorando com saudades de sua mulher.