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Tem pena de quem tem pena

Guarapari é uma cidade charmosa, rodeada por praias deslumbrantes. Entretanto, sua história contém episódios pouco edificantes. Tendo o privilégio de ter uma casa em Setiba, faço dessa antiga Vila dos Jesuítas o meu balneário predileto, depois de Vila Velha, berço do meu nascimento. Semana passada, eu estava contornando o trevo localizado na entrada da Cidade Saúde, onde se encontram algumas estátuas de garças vermelhas, representantes dos primeiros habitantes do lugar, quando, após parar ao lado daquele canteiro, tive a inquietante impressão de que uma daquelas pernaltas piscou os olhos para mim.

Talvez, em função do calor reinante no mês de fevereiro, do cansaço pela labuta da semana ou mesmo de um lapso cognitivo, procurei ignorar essa provável alucinação. Apesar disso, esse acontecimento não mais me saiu da cabeça, gerando uma persistente curiosidade. No final da tarde, quando retornava para Setiba, ainda com aquele pensamento na cuca, eu resolvi parar no local.

Desci do carro e me aproximei daquelas obras de arte para, atônito, testemunhar a atitude da maior e mais simpática das cegonhas, de saudar-me: Olá! Você sabe quem eu fui? -Claro, respondi. Você é a memória da beleza que outrora fora esse lugar. Quem batizou você de Guará, foram os Temiminós, dentro de sua singeleza. Gûyrá significa pássaro, embora a zoologia denomine vocês de Íbis rubra (cegonha vermelha).

-Percebo que você sabe muita coisa sobre nós, mas será que consegues responder por que eu tenho a plumagem vermelha? -Creio que não. -Tudo bem, eu explico: Assim como você, que vem à Guarapari saborear a famosa moqueca capixaba, eu também aprecio os frutos do mar. Antigamente, eu passava os dias chafurdando na lama do manguezal, com meu forte bico, catando crustáceos, ricos em proteína e caroteno.

Você sabe o que é caroteno? -Ora, Dona Garça, claro que sei!

A senhora está esquecendo de que eu sou Médico? Caroteno é o pigmento que dá aquela coloração amarelada aos legumes, lagostas, camarões, siris, etc. Esse elemento também é conhecido como betacaroteno ou provitamina A. -Certo, Doutor, mas o principal você esqueceu-se de mencionar: A minha deslumbrante plumagem é devida a absorção dessa substância através da minha dieta.

Meus vizinhos, os índios, costumavam arrancar minhas penas para os seus adornos. No entanto, eles respeitavam a natureza mais do que vocês. Minha terra natal, Guaraparim ou Guarapari, como vocês costumam chamar, é sempre lembrada pelas suas radioativas areias monazítica, pela moqueca de badejo, pelas praias adornadas de banhistas estonteantes e pelo poema em forma de música, composto por Pedro Caetano. Todos esses atrativos continuam aqui, enquanto eu apenas existo como estátua. Até o nome desse belo litoral, já antecipava minha extinção: Guarapari significa armadilha de pegar garça. É como se alguém me dissesse: Honra-me com a tua ausência. Hoje não voam mais guarás em Guarapari. Dizem que o último tentou se esconder no brasão e na bandeira do Município.

-Desculpe a todos nós, seres humanos, Dona Garça. Perdão pela nossa ambição. Sinto-me constrangido por todos esses acontecimentos e também ando preocupado com a minha sanidade psíquica; pois aqui estou eu, conversando com uma ave! -Quanto à devastação que vocês fizeram, não há mais jeito. Quanto à sua saúde mental, não deve ser pior do que daqueles que, em nome do progresso, destroem a vida. Pelo menos você me notou. Existir é ser percebido.

Cabisbaixo, retornei para casa. Enquanto rodava pelo asfalto quente, ouvindo barulhentas buzinas, passando por lixões e aterros exalando miasmas, pensei: Qual é o sentido do progresso: Conforto? Bem estar? Os apóstolos da modernidade dizem que sim. Eu concordo que o progresso veio para ficar. Mas, de que adianta ele ser eterno, se nós somos efêmeros?!

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