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As verdades do Osmário

Sempre morei aqui na Praia da Costa, menos durante os quatro anos em que fui Secretário do Conselho Estadual de Cultura e me mudei pra Vitória. A empregada que arranjei por lá, a Martelena, veio outro dia me visitar e trouxe junto o marido Osmário, que, além de saber consertar tudo numa casa, também é um emérito contador de causos.  São dele as historinhas de hoje. Não respondo pela veracidade de nenhuma, mas garanto que todas se enquadram naquele velho ditado italiano “se non é vero, é bene trovato” (se não é verdade, é bem achado). 

 Diz Osmário que num sobrado da Cidade Alta moravam três irmãs velhinhas, uma com 90 anos, outra com 88 e a terceira com 85.  Uma vez, elas o chamaram para desentupir o ralo da cozinha e ele estava lá desentupindo quando a irmã de 90 anos foi encher a banheira pra tomar banho e dali a pouco gritou aflita: “Alguém sabe se eu estava entrando ou saindo da banheira?” A irmã de 88 respondeu: “Espera que vou subir aí pra ver!”. E começou a subir as escadas, só que ao parar pra recuperar o fôlego, desatou a berrar: “Me acudam! Não sei se tô subindo ou descendo!” A caçula de 85 balançou a cabeça pro Osmário, “Deus me livre de ficar lelé como essas duas!”, bateu três vezes na mesa pra esconjurar a caduquice e tranquilizou as irmãs: “Calma meninas, já vou ajudar vocês! Primeiro deixa ver quem tá batendo na porta!”

Osmário nasceu e cresceu em Itarana. Segundo ele, os frequentadores do principal bar da cidade tinham o costume de se divertir à custa do Coquinho, o maluco do lugar.  Todo santo dia ofereciam a Coquinho a escolha entre duas moedas, uma de 25 centavos e outra de cinquenta. Invariavelmente, ele arregalava os olhos de cobiça e escolhia a moeda maior, de 25 centavos, provocando risadas gerais. Certo dia, um forasteiro de bom coração viu a cena, chamou Coquinho de lado e o alertou que a moeda maior valia menos que a moeda menor. “Brigado, moço”, agradeceu Coquinho, “mas sempre sube disso. Dá lucro bancá de burro na frente dos burro que banca de sabido.  O dia que eu escolher a moeda de cinquenta centavos, a brincadeira deles perde a graça, acaba e eu não ganho mais moeda nenhuma”.

Uma loirinha pedia carona na estrada de Santa Teresa para Itarana. Já havia escurecido, ameaçava cair um temporal e nenhum carro passava. Foi quando um fusca salvador se aproximou devagarinho e parou perto dela. Aliviada, a loirinha abriu a porta e praticamente pulou dentro do fusca, levando um tremendo susto ao perceber que não havia ninguém ao volante! Para piorar, o fusca fantasma recomeçou a andar, bem lentamente e rumando direto para uma curva perigosa, ladeada por uma pirambeira. A poucos metros da curva, uma misteriosa mão negra surgiu pela janela do carro e moveu o volante. Em pânico total, a loirinha abriu a porta, saltou fora, se ralou toda no asfalto, levantou e saiu em disparada. Meia hora depois, exausta, encharcada de chuva e ainda em estado de choque, ela chegou a um posto de gasolina. Dois negões mexiam no motor de um fusca. Um deles a viu chegando, sorriu e cutucou o outro: “Aí a branquela retardada que entrou no carro quando a gente tava empurrando!”

Ano passado, Osmário ganhou um dinheirinho extra como motorista na campanha de um deputado estadual atrás da reeleição. Despachado, logo ganhou a confiança do homem, que telefonou pra ele de um motel, durante aquela célebre noite do apagão: “Fiquei a pé, rapaz, vem cá me buscar!” Sem eletricidade, a porta da garagem do motel não funcionava, prendendo o carro do deputado, que, aliás, nem era dele, mas da esposa.  Osmário foi apanhar o patrão e a amante. “Já liguei pra Dona Encrenca dando uma desculpa, falei que fui assaltado. Amanhã você volta no motel, pega o carro e eu digo que a polícia encontrou.” Os dois deixaram a amante em casa e foram pro apartamento do deputado, um duplex na Mata da Praia. Nem precisaram subir. A esposa aguardava na portaria, cheia de carinhos: “Ainda bem que os ladrões não te machucaram, fofucho!” “É, ainda bem, fofucha, mas levaram seu carro...” “Ah, não se preocupe. Já me avisaram que ele foi localizado. Estava esperando você chegar pra ir lá comigo buscar. Acredita que semana passada mandei instalar um rastreador via satélite? Que sorte, né?”

É,  a sorte é como um raio, nunca se sabe onde vai cair... Mas agora, pra passar a régua e fechar a conta, uma que não tem nada a ver com o Osmário.

Dizem que a ONU decidiu fazer uma pesquisa e enviou aos políticos de vários países a seguinte pergunta: “Por favor, diga honestamente qual sua opinião sobre a escassez de comida no resto do mundo”.  As respostas foram evasivas. Os políticos europeus não entenderam o que é “escassez”. Os africanos não sabiam o que era “comida”. Os argentinos nunca ouviram falar de “por favor”. Os cubanos desconheciam a palavra “opinião”. Os americanos ignoravam o significado de “resto do mundo”. Quanto aos políticos brasileiros, rum! continuam debatendo até hoje pra descobrir o que é “honestamente”.

 

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Em algum lugar do passado

Na última coluna, prometi voltar novamente no tempo, retomando as comparações entre nossa vidinha em 1980 e a vidona atual. Ou vice-versa. Aí, fiquei pensando por onde começar. O título não foi problema, caiu do céu logo no início da pensação: "Em Algum Lugar do Passado". Só que, assim como caiu, quase descaiu em seguida. Achei apelação plagiar o nome daquele filme famoso com o Christopher Reaves. Mas fui conferir no Google e, surpreso, descobri que o filme foi lançado exatamente em... 1980! Sincronicidade pura, como diz minha querida Nayara. Bem, já tinha o título. Faltava escolher as comparações.

Que tal abrir falando de tatuagens? Em 1980, tatuagem era negócio de marinheiro e maconheiro. O avô de um amigo meu era tatuado e o garoto morria de vergonha dele. Hoje virou moda. Mas moda é uma coisa cíclica. Aposto que os netos da atual geração tatuada também morrerão de vergonha de seus vôs e vós maluquetes. Assim como o piercing, outro adereço que certamente sairá de moda no futuro. Em 2040, a meninada de hoje esconderá suas fotos usando piercings assim como nós, atuais cinquentões, morremos de vergonha ao ver nossas fotos usando calças boca de sino. É provável que algo parecido também aconteça com esses rapazes bombados de academia, que voltarão a ser motivo de risadas como em 1980, quando ninguém ligava pra músculo a não ser pobre na fila do açougue. Carne de terceira. Sem valor.

Eu poderia lembrar que trinta anos atrás se podia andar sozinho na Praia da Costa, sem perigo, às três da madrugada. Cansei de fazer isso voltando das baladas. Hoje não dá pra andar em paz nem ao meio-dia de domingo. Nosso bairro tá parecendo luta de boxe. A cada três minutos, um assalto. E não é só assalto não, é tudo quanto é bandalheira. No reveillon, um casal encontrou um homem parado perto de seu carro. Urinando. Dentro do carro! Nem procuraram a polícia. Não adianta. O exemplo vem de cima, com o país cheio de políticos fazenda merda impunemente. E não venham me acusar de escrever palavrão num jornal de família. Também só estou seguindo um exemplo vindo de cima. Ou já esqueceram o Lula falando na televisão que queria "tirar o povo da merda"? Nisso não mudamos. A incontinência verbal dos presidentes já causava perplexidade nos anos 80, com Figueiredo dizendo que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo.

Falando em presidência, e a Dilma, hein? Parece que começou com o pé direito. Vamos ver no que dá. Independente de gostarmos ou não dela, é a nossa presidenta, temos mais é que torcer pra que faça um bom governo. Estou confiante, embora tenha medo das concessões. Vê-la no dia da posse aos beijos e abraços com o Sarney e o Edir Macedo tirou um pouco do meu otimismo. Fora ter mantido o Pedro Novais como Ministro do Turismo. Pedro Novais é aquele deputado octogenário que levou quinze casais pra fazer uma orgia num motel e mandou a conta pra Câmara. Se bem que no fundo o gesto faz sentido. O panorama da política nacional é meio pornográfico mesmo e não duvido nada que o bom velhinho use a verba de representação pra comprar Viagra. O lado bom da posse foi, com todo respeito, a gostosíssima senhora Michel Temer. Já estão até propondo em Brasília mudar o nome da residência oficial do vice-presidente de Palácio do Jaburu para Palácio da Princesa. Nisso estamos bem melhor que em 1980. Dona Dulce, mulher do Figueiredo, era um tremendo canhão. Também com todo respeito.

Uma coisa que não mudou é temporal em Vila Velha. Os estragos continuam iguais aos de antigamente. O Neucimar Fraga bem que podia imitar o Bolsa Família do governo federal e criar pra nós o Balsa Família. Ajudaria muito na hora do aperto. Por falar em aperto, os aumentos de salário também não mudaram. Nem o cinismo. Os aposentados acabam de ter um aumento de 5,88%. O Judiciário de 56%. Vai ver o pão dos juizes é mais caro que o pão do povo. Em compensação, a prefeitura mudou. De lugar, mas mudou. Piadinhas à parte, Vila Velha tem hoje algo que era um sonho distante em 1980, uma lei de incentivo cultural. Aliás, milagre dos milagres, leis semelhantes pipocaram no estado inteiro: a Rubem Braga em Vitória, a Chico Prego na Serra, a João Bananeira em Cariacica e a lei de Cachoeiro, que também chama Rubem Braga, mas que os gozadores cachoeirenses querem rebatizar, em homenagem a Roberto Carlos, de Lei de Laura.

Em 1980, imaginávamos 2010 em plena era espacial, com hotéis na Lua e expedições a Marte. Quanta ilusão! O que acabou indo pro espaço foi a privacidade. Antes ninguém se expunha, havia uma certa reserva quanto a estranhos ficarem sabendo de nossas intimidades. Hoje está tudo escancarado. Um adolescente da Nova Zelândia chegou a botar à venda no site TradeMe as fotos de sua mãe. Pelada! Enfim, o tempo é de Big Brother, invasão total da privacidade. E a maioria nem se importa, pelo contrário, estimula, pondo suas próprias fotos e particularidades nos sites de relacionamento. O resultado é que espiar a vida alheia virou um esporte onde sequer os telefones se salvam. Temos milhões de celulares e nenhuma educação ao falar ao celular. Ficam todos berrando sem se incomodar com quem está por perto. O que não deixa de ser engraçado. Outra tarde, plantado numa fila, ouvi uma garota brigando com o ex-namorado: "Não vou gastar meus créditos pra ouvir você falando coisas sem anexo!"

Se agora temos facilidades impensáveis em 1980, como teste de DNA ou caixa-eletrônico, também complicamos o que era simples e natural. Caso do acarajé. Muitos evangélicos passaram a não comer acarajé porque, amém Jesus, é comida de Xangô! Nesse ponto, Vila Velha avançou, com a inauguração, na pracinha de Coqueiral de Itaparica, de uma barraquinha especializada em... acarajé gospel! Pois é, o mundo está andando tão rápido que nesses últimos trinta anos já teve até coisa que apareceu e desapareceu, como o videocassete. E coisa que entrou em desuso, como o freezer. Por causa da inflação, toda casa tinha um freezer vertical ao lado da geladeira. Cadê eles? Sumiram. Do mesmo modo que aqueles aparelhos de som enormes, com caixas que ocupavam metade da sala. Hoje é tudo muito prático, pequeno, quase invisível. Mas pra ouvir o quê? Meu Deus! Axé, funk e breganejo!

Eu poderia falar também das tribos. Já tínhamos tribos em 1980, só que eram contáveis nos dedos: as cocotas, os hippies, os playboyzinhos, os roqueiros e pouca variedade mais. Depois vieram as patricinhas, os mauricinhos, os pitboys, os góticos, os emos, os grunges e finalmente as recentes alcatéias de freegans, playsons e cosplayers. Sabe o que são freegans, playsons e cosplayers? Eu também não. Só sei que eles se comunicam entre si numa mistura cucaracha de inglês e português. Recorrendo de novo ao vocabulário do Lula, não é uma merda essa adoção radical de estrangeirismos? Não se faz mais intervalo pra lanche, é pro coffee-break Não se vai mais a restaurante de comida a quilo, se vai ao self service. Ninguém liga pra central de atendimento, liga pro call center. E tome delivery, dowload, upgrad, fedback... A parte boa é que ninguém mais guarda rancor, faz backup das mágoas.

Eu poderia falar disso tudo que listei aí em cima, mas que droga, trinta anos é muito tempo! Justamente quando estava quase descobrindo todas as respostas, não é que mudaram todas as perguntas? Fazer o quê. Bola pra frente. A vida é como andar de bicicleta. Se parar de pedalar, a gente cai. Bom ano novo! Em 2040, voltarei pra falar de 2011.

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O Zorro e a Odalisca

Tem milagre que só dá para contar falseando o nome dos santos, principalmente quando eles ainda estão vivos e vigorosos o bastante para quebrarem suas bengalas na cabeça da gente. Quem me passou esta história passou também o nome do casal, mas escondendo-se no anonimato, a pessoa pode correr o risco, coisa que eu não posso, até porque um dos filhos de Sílvio e Eunice (assim os chamarei), é um político capixaba muito conhecido e mais pela fama de brigão do que propriamente por seus raquíticos feitos parlamentares.

Quando aconteceu, não sei precisar. Pela idade atual dos protagonistas estimo que tenha sido em meados dos anos 60. De qualquer forma, parece que Sílvio e Eunice já tinham pelo menos dois dos três filhos, o que devia atrapalhar, mas não impedia que continuassem a levar uma vida social agitada para os padrões da época. Assim, como fazia todo ano, quando o carnaval foi se aproximando, Eunice mandou uma costureira fabricar uma fantasia de Zorro para Sílvio e outra de odalisca para ela, com direito a véu cobrindo o rosto.

Quando chegou o domingo de carnaval, eufórica com o baile do Golfinho (clube que ficava onde hoje é a Câmara de Vila Velha), Eunice passou o dia se arrumando, porém, lá pelas oito da noite as coisas começaram a andar para trás. Primeiro foi Jorge Gangorra que apareceu. O sujeitinho tinha esse apelido porque era tão chato que onde sentava, todo mundo levantava e Eunice tinha pavor de suas brincadeiras idiotas, só o suportando porque era o melhor amigo de Sílvio. Depois, como desgraça pouca é bobagem, tia Jandira mandou recado avisando do retorno da enxaqueca. Não ia dar para ficar tomando conta das crianças, como tinha prometido. O mundo veio abaixo. Sem babá, mixou o baile!

– Êpa, isso não! – berrou Jorge – Sílvio não pode faltar, ele é a alma da turma, o folião mais animado!

Eunice remeteu-lhe um olhar de raiva concentrada, mas o intrometido continuou botando pilha em Sílvio, que afinal se rendeu:

– É, morzinho, não tem jeito, eu vou, preciso ir. Você fica com as crianças.

Foi falando e tratando de colocar a capa e a máscara de Zorro. Fazer o quê? Com a revolução feminina ainda engatinhando, Eunice foi obrigada a suspirar conformada. Acontece que a vida não anda em linha reta. Duas horas depois dos marmanjos saírem, a enxaqueca de tia Jandira diminuiu e a velha apareceu, fiel ao compromisso assumido. Alegrinha, Eunice meteu-se nos véus de odalisca e correu pro Golfinho ao encontro do maridão. Só para levar um tremendo susto, ao dar com seu mascarado negro pulando abraçado a duas sirigaitas peitudas!

A primeira reação foi de raiva, vontade de rodar a baiana, mas acabou indo chorar no banheiro, onde uma amiga solidária ofereceu um copo de uísque, que ela virou de uma golada só. Encorajada pelo álcool, enxugou as lágrimas, enquanto destilava e aperfeiçoava a vingança: “Vou seduzir o Sílvio! Estou mascarada, ele não conhece minha fantasia nem sabe que eu vim. Chego perto, me insinuo, ele vai pensar que sou outra, dou uns amassos nele e aí tiro o véu e desço porrada!” Estratégia traçada, retornou ao salão, tomou mais uns dois ou três uísques e atacou o sem-vergonha. Para sua surpresa, foi muito mais fácil do que imaginou. Facílimo mesmo. No terceiro beijo, ele a arrastou para fora do clube, enfiando-se com ela num providencial vão de muro. Pega aqui, segura ali, Eunice já ia se revelar, mas uísque, amasso e vão de muro é uma combinação fatal. O álcool e a tesão embotaram seu raciocínio, ela relaxou (“depois eu brigo”), abriu as pernas e cráu! entregou-se à espada do Zorro. O duro foi que, mal acabou o serviço, o cretino caiu fora, deixando-a só e desnorteada.

De alguma forma conseguiu voltar para casa. Tomou um banho gelado, botou a camisola e ficou esperando. Já era dia claro quando Sílvio chegou, acabadão, maior cara de ressaca. Eunice caprichou no cinismo:

– E aí, morzão, divertiu muito? Tava bom o baile?

Sílvio atirou-se no sofá, jogando um sapato para cada lado:

– Baile? Que baile? Ah, o baile!... Acabei não indo. O Jorge me levou pra tomar umas biritas na casa dele, eu bebi demais e apaguei. O sacana me largou lá sozinho, vestiu minha fantasia, foi pro Golfinho e cê não sabe da maior, não é que ele conseguiu comer uma vagabunda vestida de odalisca!? 

 Não faço a mínima idéia de como a história caiu na boca do povo e chegou até meus ouvidos. Vai ver Eunice contou para tia Jandira, depois que voltou do desmaio. E velha, sabe como é, adora uma fofoca!

Todo mundo já está cansado de ver aquele comercial de cerveja em que um cara chato atende o celular de um amigo e sacaneia com a esposa do rapaz: “Tô na casa de um amigão, jogando um poquerzão e não vou agora não!” Pois agora inventaram a resposta da mulher: “Relaxa, amor.  Tô na casa da vizinha, tá rolando a maior festinha, vou chegar de manhãzinha e não vou dormir sozinha...”

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Fuçando no baú da memória

Um dia desses, eu e Edílson Villaflor nos encontramos no Café do Brá, ali na Rua 24 Horas e tiramos a tarde pra relembrar os tempos antigos. Peraí. Tempos antigos? Falando assim, o leitor que não conhece a gente pode ficar com uma impressão errada, imaginando dois velhinhos de dentadura trocando reminiscências sobre Getúlio Vargas. Nada é nada disso. Embora esse selfservice chamado lulismo não seja muito diferente do velho getulismo a la carte, eu e o Villaflor estamos longe da terceira idade e o “nosso” tempo antigo ainda está bem vivo e relativamente próximo, estacionado nalguma esquina recente da memória, perto do cruzamento de 79 com 80, trinta anos atrás, quando nos conhecemos.

Vila Velha era um ovo trinta anos atrás. Devia ter o quê?  Cem mil habitantes? Acho que nem isso. Na faixa litorânea dava pra contar nos dedos de uma mão o número de prédios com elevador.  O Chalé Motel ainda ficava quase no meio do mato, perto de um bordel de quinta categoria chamado Recanto Cigano. A Gil Veloso só tinha asfalto da Champagnat pro Libanês. No sentido Itapuã, era areia pura. Não existia a Terceira Ponte. Nem a Segunda. A UVV não passava de um embrião noturno funcionando no Vasco Coutinho e chamar a polícia, coisa rara, era chamar o temido Delegado Osíres, tão eficientemente violento quanto barrigudo. Em janeiro de 79, quando montei meu primeiro consultório, éramos 34 dentistas na cidade inteira. Hoje somos, sei lá, talvez uns 700, mais que o dobro das 338 pessoas que são assassinadas em média por ano no município.

Mas sejamos justos. Para o bem ou para o mal, não foi só Vila Velha que mudou. O Espírito Santo mudou junto. O Brasil. O Mundo.  Parece que até a natureza é diferente. Veja ocaso dos vulcões. Antigamente, quando um deles entrava em erupção, a gente sabia pronunciar o nome.  Era Vesúvio, Santa Helena, Cracatoa.  Há pouco tempo um vulcão da Islândia paralisou o tráfego aéreo europeu. Qual o nome dele? Tente ler em voz alta: Eyjafjallajoekull. Não tínhamos a Internet, é verdade, e muito menos computador. Meus vizinhos deviam varar a noite acordados xingando os infernais tlec-tlec da minha máquina de escrever Olivetti (que fim levou a coitada?).  A guerra política também mudou.  Em 80, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Mário Covas, Teotônio Vilela, lutavam bravamente contra o que restava de ditadura.  Esses que estão aí hoje, pedindo nosso voto até uns dias atrás, lutam é pra acabar contra o que resta de ética e dignidade no país.

Em 80, encontrar quem falasse inglês era raridade e só fazia turismo no exterior quem tinha muita grana. A moda (ou necessidade) de trabalhar nos EUA ainda engatinhava e quem era de Valadares, morava em Valadares, não em Boston. Porta que abre sozinha já existia.  Na nave Enterprise de Jornada nas Estrelas. Telefone?  O fixo, que nem chamava fixo, só telefone mesmo, custava os olhos da cara e demorava anos pra conseguir uma linha.  Celular, só lembro do que o James Bond usou em Moonraker. Duas da madrugada, a TV saía do ar. DVD? Que palavrão é esse? Filme, a gente via no cinema. Música, comprava o disco. Em compensação, arrá-rá!, ninguém deixava de transar com medo da AIDS! Só que não tinha Viagra.

 Pois é, a medicina é outro negócio que melhorou muito. É hospital de luxo, remédio pra isso, remédio praquilo, implante, transplante... Ficou de um jeito que a pessoa só morre se quiser. Ou se tiver o desplante de não poder pagar o tratamento, porque o SUS não tem vaga pra todo mundo e plano de saúde virou arapuca de enganar trouxa.  Falando em enganação, quem é que nasceu depois dos 80? O 0800, esse grande vilão contemporâneo que funciona como uma perfeita fábrica de loucos. Quem comete o desatino de discar prum 0800 só preserva a sanidade mental se correr pro analista assim que largar o telefone. Mas não sei não. Acho que daqui a pouco inventam 0800 de analista também.  

 Tá na hora de fechar a coluna, mas como é uma delícia remexer em baú de velharias, prometo voltar ao assunto na próxima edição. Só queria,  antes do ponto final, lembrar ao leitor outra coisa que não mudou e que é a  Justiça.Os salários continuam entre os mais altos do funcionalismo público, as férias as mais prolongadas, o corporativismo minha-nossa-senhora e a morosidade Jesus-nos-acuda! O lado bom é que nossa Justiça continua um baluarte de moralidade. Nunca tivemos, não temos e jamais teremos corrupção sistemática no judiciário brasileiro, provavelmente um dos mais íntegros do planeta!

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Sobras do ano passado

Com razão, vocês podem achar que a coluna de hoje é de piadinhas. Não é não, tudo que está aqui aconteceu de verdade. Por incrível que pareça.

Indignado com a roubalheira do governo Arruda, o povo de Brasília saiu às ruas cobrando ética na política. Por ordem do governador, um coronel chamado Silva Filho mandou a cavalaria da PM partir com tudo pra cima dos manifestantes, numa ação covarde que deixou várias pessoas feridas. Acuado pela imprensa, o coronelzinho baba-ovo negou assim as acusações de truculência policial: - Um ou outro manifestante pode ter sido pisoteado, mas por acidente, nossos cavalos não tinham intenção de fazer mal a ninguém!

Propaganda muitíssimo bem bolada de um motel na rodovia Rio-São Paulo: “Tá duro? 19,90 no Blue Sky!”

Desabafo de uma perua inconformada: - Esse negócio de dieta é pura ilusão. As baleias só bebem água, só comem peixe, fazem natação o dia todo e são gordas!

Desabafo de um sessentão conformado: - Na minha idade, só me aparece mulher-moeda, ou cara ou coroa.

Uma moça de ar sério, até um pouquinho triste, subia pela escada rolante do Shopping Praia da Costa. De repente foi reconhecida por uma amiga tão escandalosa quanto, digamos, loira.

- Meninaaa, como cê tá sumida! Meses que não te vejo! O que andou fazendo esse tempo todo?

- Quimioterapia.

- Que bacaaana! Na UFES ou na UVV?

Minha noiva Nayara encontrou dois menininhos chupando picolé na praia. E conversando:

- Tô com medo, véio. Minha tia voltou ontem da igreja falando que o mundo vai acabar em 2012!

- Em 2012 não! Você não sabe que já marcaram a copa do mundo de 2014 no Brasil?

Falando em copa do mundo, quem me visitou outro dia foi meu amigo Fredão, carioca típico, daqueles malandrões, cheios de gíria. Olha só a idéia dele:

- Mermão, já tamo sabendo que vai ter copa em 2014 e olimpíada em 2016. Então, pô, ninguém é de ferro, a gente podia aproveitar e enforcar 2015, né?

Desde que seu filho médico casou e mudou pra São Paulo, dona Santuza habituou-se a passar por lá as festas de fim de ano, agarrada ao seu grande xodó, o netinho Rafael. Da última vez a família inteira foi visitar o famoso zoológico da capital paulista. Aí, diante da jaula do lobo, Rafael quase matou dona Santuza de vergonha ao desandar a gritar bem alto:

- Lobo! Lobo! Olha a vovozinha aqui!

 Outra ótima do Rafael. Estava ele no corredor do prédio brincando de perseguir seus amiguinhos, quando o porteiro apareceu para atrapalhar a brincadeira:

- Crianças, aí não pode correr não!

Rafael parou, botou as mãozinhas na cintura e disparou:

- Ué, então porque chama corredor?

 Passou ao vivo na televisão. A repórter de um programa de fofocas insistia em perguntas capciosas, tentando fazer com que Preta Gil falasse mal da cantora Ana Carolina. Ó só a resposta da filha de Gilberto Gil:

- Meu amor, não vou cuspir no prato que me comeu!

 Agora uma de deputado e deputado nosso, o Manato, do PDT capixaba. Coitado, o homem teve um trabalhão elaborando um complexo projeto de lei e a Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara Federal rejeitou sumariamente o projeto. Não dá para entender a causa da rejeição. Vão me dizer que não é criativo e extremamente útil um projeto que obriga todos os noivos do país a plantarem dez árvores para se casar? E 25 em caso de divórcio! 

Asneira oficial legalizada. O artigo 2º da Resolução 81/98 do Conselho Nacional do Trânsito obriga os motoristas mortos em acidentes a serem submetidos a exame de teor alcoólico. O motivo é verificar a culpa do falecido e até aí tudo bem. A asneira está no artigo 3º, que pune os mortos “que se recusarem a realizar o exame” com penas de multa e suspensão do direito de dirigir. O bom é que o morto não tem a carteira cassada, podendo voltar a dirigir ao fim da suspensão.

Para terminar, uma bela rebatida de cantada:

- Eu quero o seu amor, gata!

- Pera só um pouquinho... Amô-or! Tem um moço aqui querendo você!