Os anacoretas de Ibacapé
Muito antes de Pedro Palácios pousar os olhos naquela majestosa montanha, os tupiniquins já galgavam seu cume buscando se libertarem do cativeiro da solidão. Lá, bem no alto, eles sentiam o inteiro desabrochar da existência em toda sua nudez.
Numa época em que o clarão do dia era comandado pelo Sol e o suave prateado da noite provinha dos raios leitosos da Lua ou do brilho tímido das estrelas, havia lugar para experiências místicas e transcendentais.
Num período em que os ruídos eram oriundos apenas da natureza, derramando sobre a Terra os murmúrios dos riachos e os gemidos dos ventos, todos respeitando sua doce quietude, os êxtases e as visões eram quase triviais.
Aquela colina, onde mais tarde seria erguido o Santuário da Penha era conhecida pelos índios como “Ibacapé”, significando “sentir-se no céu”. Para lá iam eles, com o propósito de contemplar e meditar.
Quantos milagres ali não aconteceram! Quanta esperança ali não foi depositada! Quantas almas ali não foram consoladas! Quanta gratidão ali não foi oferecida! Quanto amor ali não foi gerado! Quantas dúvidas ali não foram eliminadas! Quantos cárceres emocionais ali não foram abertos!
Algum tempo depois, aqui chegou o franciscano Pedro Palácios, homem de fé e vontade, carregando seu firme propósito de disseminar a palavra de Deus.
Para ele, religioso de ação, não bastava apenas contemplação. Conhecedor profundo do Novo Testamento, ele lera que “a estrada que leva a Maria inclui a de Marta.” Maria simboliza a vida contemplativa, Marta simboliza a vida ativa. Pensou: vamos trabalhar para, lá de cima, as coisas do Criador, contemplar!
Nasce o Convento da Penha, esse monumental testemunho daquele visionário.
Aos poucos, os portugueses foram tomando o lugar dos índios, se dirigindo para lá em busca de redenção. Via-se a procissão de ovelhas famintas voltando-se para o céu, agora um pouco menos alto.
Reinando, absoluto, no âmago da pequena Vila Velha, aquela imponente elevação, lugar de devoção inspirada, recebe seus fiéis. Pipocam milagres e graças alcançadas. O quadro de Nossa Senhora desaparece da gruta, indo reaparecer no cume da montanha. Basta um cortejo com o painel da Santa para acabar com a seca que grassa na cidade. A Casa dos Milagres é ampliada para guardar tantas oferendas.
O tempo passou. A Festa da Penha mudou. Continuamos amando a Deus sobre todas as coisas, mas os mecanismos que engendram a fé também se alteraram. O Convento é iluminado com ondas laser. Os centenários sinos agora são elétricos e digitais. A pirotecnia, os cerimoniais, os espetáculos teatrais buscam a persuasão dos fiéis. Cá embaixo, os edifícios apertam a bela mata, tirando o esplendor da colina sagrada. O silêncio da cidade foi substituído pelo barulho dos automóveis. Os problemas do cotidiano foram gerando certa indiferença no povo. As premências da vida, que vai da tediosa rotina à tortura, brutaliza as pessoas.
A mente, anestesiada por valores materiais, tranca o mundo interior do indivíduo, afastando o cérebro do coração. Oramos, vamos à missa ou ao culto, mas de maneira protocolar.
O progresso, a tecnologia, a ciência e o volume de informações, entopem o pensamento, obstruindo a entrada do ser humano com o seu interior.
Gastando grande parte de suas energias para as emergentes questões diárias, o cérebro desaprende entrar em comunhão consigo mesmo. Tentamos desentupir esses ralos com fanatismo, drogas químicas, álcool, comida, dinheiro, status e poder, mesmo sabendo que esses valores são ineficazes.
Jejum, oração, silêncio e meditação foram, durante milênios, as ferramentas para o homem encontrar o Criador; mas... Por onde tem andado Deus?
Lá, bem no alto do Convento ou aqui em baixo, nas festividades do momento? Não! O caminho para “Ibacapé” continua sendo o mesmo: dentro de nós.