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Dr. João Evangelista
Gastro-enterologista

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Pra te encontrar no céu

Enercília Teixeira Guimarães; nome pouco conhecido, pessoa menos conhecida ainda, mas que ocupa todo o espaço do meu coração. Estava presente durante minha chegada neste mundo e me criou durante 56 anos. Faz parte daquele afortunado e minguado grupo de pessoas que alcançam 100 anos. Aos 101, acaba de sofrer um AVC Isquêmico. Seu lado direito está paralisado. Minha amada tia-mãe já não mais consegue deglutir alimentos e ingerir líquidos. Sendo gastroenterologista, corro em direção ao hospital com o objetivo de introduzir uma sonda naso-gástrica para que ela não morra de fome. Aquela pequena mangueira incomoda, irrita, migra de lugar, correndo risco de infecção, além de aumentar o sofrimento daquela mulher tão cara a minha vida. Por outro lado, nada fazer também gera tortura naqueles que observam o sinistro espectro da morte delineando-se. Passado alguns dias resolvemos submetê-la a uma gastrostomia: abertura feita no estômago através do abdome, criando um novo trajeto para a sonda. Mesmo nutrindo seu corpo, notamos o rápido declínio de suas funções mentais. Impotentes, padecemos com a indecisão de Deus: se vai levá-la agora ou deixá-la mais um tempo conosco. Minha mãe geme suas orações, angustiada. Para reduzir o infortúnio do ser humano, vale o que funcionar, seja ciência ou religião. Com o emprego da alimentação enteral, o corpo tenta melhorar e os fluidos vitais voltam navegar pelas áreas hidratadas. Auscultando o bombear daquele débil coração enchendo as poucas artérias hígidas naquele cérebro danificado, meu estetoscópio enche o silêncio dos meus ouvidos com aquele pulsar, lembrando-me a fragilidade efêmera da existência.

101 anos! Aquele debilitado ser permanece lutando contra a morte. Seus ralos e brancos cabelos lembram o desgaste do tempo. Sua pele, enrugada, já não mais se arrepia com o sopro da vida. Sua coluna, arqueada, dobra-se pelo peso dos anos. Junto a sua cabeceira observa-se: antibióticos, pomadas, luvas, alimentos em latas, sondas, equipo de soro, colchões contra escaras, entre outras parafernálias. Nada disso adianta para o frágil sistema imunológico daquele corpo cheio de amor. Suas células já apresentam apoptose, essa triste programação da morte. Aquele meteoro vai riscando o tempo, usando sua reserva de energia para se sustentar e viajar.

Como médico, vejo o ciclo da vida se fechando. Como ser humano, necessito lembrar o limite entre continuar lutando, pagando a existência o preço do sofrimento de um corpo cansado, ou deixando-o partir com dignidade. Nesse momento a única maneira de suportar a vida é deixá-la.

Na velhice valemos pouco. O tempo cobra nossa vitalidade. Quando desembarcamos naquele porto, notamos que nossa moeda se desvalorizou. Poucos são aqueles que continuarão olhando o idoso, não pela capa do seu livro, mas pelas suas páginas. Ninguém se lembra de premiar um ancião pela sua jornada. O terceiro prêmio poderia uma rosa de ouro! O segundo prêmio, uma rosa de prata! O primeiro prêmio deveria ser apenas uma rosa, a verdadeira, feita por Deus!

Minha querida Enercília teve um derrame cerebral, doença que divorcia o corpo da mente. Agradeço aos meus colegas médicos pela atenção e pelo carinho que eles estão dispensando á ela. Enquanto isso, eu viro Medeor, aquele que cuida.  Minha missão vai mais longe, ultrapassando aquele cérebro lesado; meu sofrimento, também. Quem agora dedica abnegação ao amado enfermo é tão médico quanto filho.

Terça feira, 23 de dezembro, 9.30 da manhã. Lá vem a morte cobrar sua dívida. Ela não necessita mais de argumentar, pois encontra aquele ser querido, bastante debilitado e cansado. Eu penso em lutar mais uma vez contra essa fabricante de dor, mas seria desumano e egoísta. Embora a angústia que a morte provoca, guardando no seu ventre, tanto vazio e tanta saudade, conforta-me o morrer rápido e pouco agonizante.

Para onde vai minha tão protetora tia-mãe?A filosofia, a religião, o mistério; todos apresentam suas teorias. Meu lenitivo é olhar para o céu, para as estrelas, para o mar; lá estará ela. Cada pedacinho dela cintila nos meus olhos, nos meus gestos, na minha tristeza, na minha perseverança em continuar lutando para dar testemunho da rica história que ela foi e ensinou para mim. Necessito continuar lutando. Preciso continuar vivendo. Parece difícil; mas não é. Basta apenas ir gastando o amor que ela me deixou.

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