Ao meu piano
Comecei estudar piano aos doze anos; idade um tanto tarde para quem deseja aprender tocar esse completo e complexo instrumento musical. Apesar disso, entusiasmados com meu desempenho, já manifestado nas primeiras aulas, meu pais resolveram comprar aquele que seria minha fonte de inspiração pela vida afora. Encomendaram um nobre “Essenfelder”, fabricado em Curitiba.
Guardo limpidamente a emoção daquela manhã quando levantei e fui lavar o rosto para depois tomar café. Ao passar do quarto para copa, olhei para sala a esquerda e vi aquele belo móvel, austero, clássico, imponente e brilhante, encostado na parede. Mal retornei do banheiro, levantei sua tampa e me deparei com aquela boca imensa, mostrando seus dentes de marfim, sorrindo para mim. Entusiasmado, feri suas teclas, buscando obter alguma música. Eu apertava várias delas de uma só vez, mas somente conseguia produzir bizarros ruídos, barulhos disformes e sons desafinados. Eu não sabia, mas teria que estudar muito, praticar bastante e amadurecer de fato, para conquistar a alma e fazer tanger o coração daquele maravilhoso instrumento, capturando inspiradas melodias.
Num domingo, durante uma audição em que executaria “Os Dois Coelhinhos”; com um elevado topete no cabelo e uma gravata borboleta no pescoço, eu tive que enfrentar a gozação de meu irmão, afirmando que gravata borboleta era coisa de garçom e que piano era instrumento de meninas. Ignorei o comentário e parti em direção ao palco, cheio de pose e orgulho, emocionando o público presente.
Hoje, passados quarenta e seis anos, venho prestar minha homenagem àquele que tanta alegria me proporcionou.
O som musical tem maior alcance que as palavras, mesmo quando são declamadas. Ele permite uma interpretação individual. Quando inserimos letra numa determinada música, maculamos esse ofício que cabe ao sentimento interpretar.
Existe uma sutil diferença entre ouvir e escutar. Sons musicais presentes em restaurantes, shoppings, festas e barzinhos, são ouvidos; jamais escutados. Escutar requer sensibilidade e ouvido apurado. Dentro de uma melodia, até a pausa, essa ausência de som, é considerada música. Quem ama verdadeiramente música, consegue escutar, tanto o silêncio que a antecede, como o silêncio que vem depois que ela acaba. Quem executa um instrumento sabe como é desagradável ouvir uma platéia entusiasmada aplaudindo antes que o último som tenha desaparecido lentamente.
Música lembra vida, pois ambas começam e terminam no nada. Tocar um instrumento é reinar como um deus, pois se pode controlar, através do som, a relação entre vida e morte, um poder que obviamente não é concedido aos seres humanos. Já que o som possui essa qualidade, há uma sensação de morte quando ele se extingue e de ressurreição quando ele retorna ordenado pelo músico.
Na música a morte é temporária, seguida pela capacidade de renascer, de recomeçar. No mundo do som, nem mesmo a morte é necessariamente o fim. Desaparece em nosso ouvido, retorna em nossa lembrança.
Quando algum curioso aperta, ao mesmo tempo várias teclas de um piano, gerando uma áspera vibração, ele não percebe que as notas musicais que formam uma melodia, seguem umas às outras, dentro de uma determinada regra e de um determinado tempo. Também não se dá conta que, assim como numa sociedade, existem leis que regem sua execução. Humildemente, cada nota sabe de seus próprios limites, assim como cada indivíduo deveria entender seu papel social. Como tantas decisões na vida, a precisão de uma execução musical está ligada ao momento em que é tomada.
Comparando música com religião, também observamos que nela não existe determinada verdade, mas interpretação.
A virtude mais sublime da música é a mistura de paixão e disciplina, ambas vivendo em harmonia uma com a outra. Mesmo a mais apaixonada frase musical tem de obedecer a um sentido de princípio e de ordem. Vive-se na música aquilo pelo qual nós também lutamos: edificar um mundo melhor, que é viver com disciplina, ainda que com paixão; e viver com liberdade, ainda que com ordem.
Quem tem a felicidade de penetrar no mundo mágico de executar algum instrumento, aprende caminhar pelas veredas que ligam o coração a mente, através das infinitas associações que a música evoca.
Quando olho para o meu piano, sonoro e harmonioso, senhor dos compassos que dividem espaço e tempo, reconciliador do mundo presente com o universo passado, sinto uma sensação de paz absoluta, vendo a estreita relação entre a vida e o tempo, alcançando a possibilidade de ir além do material para entender a essência do espiritual.
Meu pai, que também era músico, dizia que a música era um apanágio dos anjos. Um belo dia, por distração, eles deixaram o som escapar e entrar na Terra. Imediatamente, o ser humano aprisionou essa chama divina, em seus instrumentos musicais.
Ainda hoje, quando quero conhecer alguns segredos do céu, liberto as musas cativas no meu piano.