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Dr. João Evangelista
Gastro-enterologista

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O inexorável fio da vida *

Desde criança eu ouço dizer que as pessoas inteligentes não pensam na morte; afinal a vida é para ser vivida e não esquecida ou desprezada. Baseado nessa premissa, nós poderíamos adiantar que os animais são bem mais sábios, pois não se preocupam com o final da existência. Entretanto, eu creio que existe uma virtude nisso; pensando bem, quanto mais refletimos sobre a morte, mais aprendemos viver e gostar da vida. Viver é aprender a morrer!

Além do instinto de sobrevivência, presente nos animais, o ser humano usa também o amor para proteger sua vida e a vida daqueles que para ele é tão cara. Apesar disso, um dia a jornada terrestre chega ao fim. Somos pó e ao pó voltamos. Átropos, essa parca mitológica, aguarda esse momento, com sua afiada tesoura, para cortar o fio da vida.

Morre-se de tudo quanto é jeito. Uns partem mais cedo, ainda na primavera da vida. Outros queimam a vela do existir, até o cotoco, para depois se extinguirem. Um dia, todos nós teremos que dobrar a curva do caminho.

Existe um atalho para a morte, muito comum, quase na esquina da finitude, conhecido como “Acidente Vascular Encefálico” ou “Derrame Cerebral”.

Essa devastadora patologia mostra suas garras, geralmente durante a madrugada. Seria como o sacudir da mão de Deus, lembrando para a vítima, o término de sua peregrinação na Terra. Os vasos sanguíneos, esses sinuosos “rios vermelhos”, que transportam a seiva da vida, se deparam com algum obstáculo, seja ele: um trombo, uma placa de gordura, um espasmo ou algum vazamento causado por rompimento de suas paredes. Nesse momento, o isolado cérebro se vê abandonado na penumbra. É o líder perdendo a liderança, e o restante do corpo clamando por socorro, enquanto o paciente perde a noção de que algo está errado. O braço adormece, a voz perde a coordenação e as células nervosas, sem energia, desistem de comandar. Onde está o néctar sanguíneo, com sua vivificante glicose? Cadê o oxigênio que ele iria trazer? Sem eles, os neurônios já não mais fabricam ATP, esse combustível das bombas de íons, que não deixam as células reterem a invasão do intoxicante cálcio para o seu interior. Começa a neurotoxidade. Radicais livres nadam abundantemente nas sinapses, provocando destruição. Obnubilada, a mente da vítima viaja para lugares pouco habitados, cheios de sombras, delírios e alucinações. O embotamento dos reflexos, a perda da lucidez, o divórcio da alma com o corpo; criam todos eles uma fronteira difícil de atravessar, para ambos os lados. Surge o olhar distante do enfermo, traduzindo o mundo caótico, que sua mente já não mais consegue controlar. Nasce o olhar bastante aflito e angustiado daquele que o ama tanto e já nem pode ter certeza de conseguir expressá-lo. A dor é mútua, mas egoìsticamente separada pela doença. A vida grita pelo medo de perder sua morada transitória. A morte insiste em se hospedar lá; afinal ela se alimenta do ato de viver. Ambas aguardam o veredicto de Deus.

Seria esse famigerado AVC, um mecanismo de proteção?! Seria uma dádiva, ele não permitir que o ser humano tenha, um dia, de fazer as fatídicas perguntas: Mas já? Por que eu? Por que tanta pressa? Por que tão cedo? Por que dessa maneira? Por que assim? Por que para sempre? Por que tudo isso, se a bola cheia de sonhos que eu chutei no parque da minha infância, ainda não voltou ao chão!

Ninguém pode fugir ao amor e à morte. O amor é a luz da vida. Mas, quando a vela vai chegando ao fim, sua chama começa a tremer com medo da escuridão.

*Em memória dos meus tios: Filhota, Teixeira, Didina, Sodito e Tibas, todos eles vítimas de Apoplexia.

 

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