A burrice do ladrão
Talvez eu não escute quando, daqui ha pouco, meu relógio bater meia noite, afinal já estou dormindo desde dez horas. Talvez eu nem perceba as horas que posteriormente irão deslizar sobre o negro e estrelado manto que cobre o céu, escondendo da luz do dia a transitoriedade da vida. Mas, ao contrário da continuação dessa sonolenta rotina, o telefone toca, ressuscitando minha consciência, e eu acordo.
Meio obnubilado, eu pego o fone e nem percebo que a ligação está sendo efetuada a cobrar. Do outro lado da linha, pela enésima vez, alguém tenta aplicar aquele manjado golpe do seqüestro. Sabendo que muitas pessoas ainda caem nesse prosaico conto do vigário, começa a lengalenga do filho estar em poder deles, ordem de créditos para celular, dinheiro depositado em contas “laranjas”, entre outras artimanhas.
Meu cérebro, pego de surpresa e motivado por eletrizante carga de adrenalina, não consegue o equilíbrio da sensatez e entra lamentavelmente naquele jogo, iniciando uma tão inócua quanto estéril discussão com o meliante.
Antes mesmo de ouvir suas balelas, carregado de desconforto e irritação, eu inicio um derrame eloqüente de uma cachoeira de palavras que atravessam apressadas da minha mente em direção a minha boca, sem passar pelo filtro da lucidez.
Eu começo então vociferar: Caso você, patético estorvo social, fosse mais inteligente, mesmo sendo vagabundo, estaria solto. Isso prova então que você, além de bandido, é burro!
Confesso que até nutro certa admiração pelos vigaristas inteligentes, afinal eles não se utilizam, nem da violência, nem da morte, para aplicarem seus golpes. Al Capone e Lúcio Flávio foram admirados pelo seu talento e inteligência, enquanto se mantiveram livres. Presos, eles perderam o encanto.
Enquanto discorria meu sermão, o pseudo-seqüestrador tentava me interromper com ameaças de morte; mas não fiquei intimidado e continuei: Vocês, ratazanas de esgoto, são valentes na sombra. Seus escudos são sempre, a penumbra da noite, o vazio do anonimato, ou o poder hediondo de uma arma.
Ser bandido é fácil! Difícil é ser cidadão, acordando às cinco horas da manhã, umedecendo, com o suor da labuta, o duro pão de cada dia. Difícil é ter que deixar mais da metade do que se ganha para os exorbitantes impostos que alimentam a gula dos governantes inescrupulosos que, muitas vezes, acabam competindo com vocês! Difícil é não poder contar com a justiça, porque ela tem andado bastante cega, esquecendo de procurar o criminoso, não nas sarjetas, mas nas câmaras, nas prefeituras, no congresso, nos palácios, ou até mesmo embaixo de certas togas!
Apesar disso, “mermão”: O otário aqui é mais corajoso do que o sabido aí! O idiota aqui continua encarando a difícil e nobre função de ser honesto. O esperto aí está trancafiado, usando o telefone celular para intimidar pessoas ingênuas. O tolo aqui está solto, respirando a brisa do mar, fitando o esplendor do dia, acompanhando o deslumbrante desfile do sol coando seus raios por entre as nuvens! O espertalhão aí vê sua juventude escorrer como areia por entre os dedos, lançando no esgoto do tempo seus desejos e aspirações!
Para terminar, eu gostaria que você me respondesse: Por onde anda o sonho de sua desdita mãe? Onde foi parar aquele bebê outrora erguido nos braços do pai, com tanto orgulho? Onde está aquela criança que embalava tantos devaneios! Cadê ela?
Será que não seria esse o momento de você devolver a esperança que brilhava nos olhos daquela que tanto te amou, acreditando que ela cresceria junto com você?!
Será que a precariedade da sua vida não clama pela fé que você matou afogada nas lágrimas torrenciais dos olhos de quem te acalentou?! Pois quem mata o amor dentro de si; acaba matando também aquele que deu esse amor para ele!