Anjos sobre rodas
“Balbúrdia sobre rodas”, texto que publiquei mês anterior, deixa transparecer certa decepção com o nosso cotidiano. Recheado de idiossincrasias, a vida costuma exalar o miasma do progresso, alienando as pessoas, tornando-as fúteis e grosseiras. Pois bem, a experiência pela qual passei hoje, mostrou-me um ângulo mais ameno e menos pessimista sobre os seres humanos, contrariando algumas expectativas.
Já são mais de sete horas. Saindo de um plantão noturno, compro o rotineiro jornal, passo pela padaria e, como sempre, parto em direção a casa de minha mãe. Ao atravessar, erradamente, o cruzamento que liga as ruas Telmo Torres com Dom Jorge de Menezes, escuto uma explosão ensurdecedora, balançando toda a estrutura do carro e alterando a equalização dos meus tímpanos. Em milésimos de segundos, percebo meu corpo oscilando de um lado para outro, embora preso pelo cinto de segurança. Nesse curto espaço de tempo, tento segurar o volante, mas o veículo rodopia na pista e gira noventa graus. Bato com a perna esquerda na lateral do carro e os cotovelos no seu painel. Ainda sem percepção do ocorrido, forço a porta e saio cambaleando em direção ao automóvel distante alguns metros, com sua a dianteira toda amassada, saindo fumaça e drenando água do radiador. Dentro dele, um adolescente apreensivo, tenta sair pelo lado do carona, sem conseguir, e sua mãe, tensa, procura administrar o acontecimento. Mesmo reclamando ter batido com a testa no painel do carro, logo o corajoso estudante toma conta da situação e se porta com altruísmo. Apesar de estar com a perna doendo e um tanto adormecida, graças a Deus, começo analisar que está tudo sobre controle e os prejuízos materiais logo serão sanados, embora preocupado com a costumeira burocracia envolvida nesses sinistros. Foi aí que eu me espantei e verifiquei como existem pessoas que enriquecem e fortalecem nossa vida. A mãe do João Victor, engenheira Rosemary Erlacher, em nenhum momento se exaltou, fazendo julgamento de quem estava certo ou errado. Imediatamente telefonou para um colega de trabalho que logo chegou, cumprimentando-me e dando uma aula de cidadania, recolhendo os destroços dos carros com uma vassoura, evitando que alguém se ferisse nos cacos de vidro.
Fizemos rapidamente nossos contatos, ligando para a perícia e as seguradoras. Meu obsequioso corretor, Carlito Simões, apareceu em menos de dez minutos, assumindo toda aquela burocracia. Meu dileto amigo de infância, Fernando da Victória Júnior, mal liguei para o seu telefone e ele já estava presente, se prontificando levar-me a qualquer lugar. Acionado, o guincho surgiu de forma célere e, de maneira profissional, executou seu trabalho. Dois solícitos soldados do trânsito compareceram imediatamente para periciar os carros, corroborando a promessa da telefonista do número “190” de que logo-logo eles estariam presentes. O morador ao lado nos ofereceu água e cadeiras para sentar. Minha amiga, senhora Eunice, serventuária da justiça, se pôs a disposição. Em poucos minutos, lá estavam meus companheiros: Aluísio Freitas, a psicóloga Kátia Cazelli, Guilherme Lamego, o peixeiro Ronaldo, querendo me emprestar, humildemente, sua bicicleta; enfim, todos oferecendo seus préstimos. Tão logo comuniquei o caso à minha atenciosa e eficiente secretária, Masselly Gaudio Rios, solicitando controlar minha agenda de consultório; apreensiva, ela não parou de ligar a todo instante para obter informações. Terminada a perícia, levei meu carro para a oficina de meu estimado amigo Jair Sorio que, mesmo lotada de serviços, prontamente aceitou consertá-lo. Passei o restante do dia acompanhado do caro Fernando, que só se permitiu ir embora quando a locadora Localiza cedeu-me, prontamente, um carro alugado pelo seguro.
Apesar de tudo ter acabado bem, não pude deixar de criar certo trauma de quase ter virado estatística, tanto que já estou parando e olhando para os lados, mesmo quando atravesso da sala em direção a varanda do meu apartamento. Penso até em instalar quebra-molas na entrada de cada quarto e um semáforo na passagem da copa para a cozinha. Ao anoitecer, ainda meio dolorido, após descansar um pouco, tratei de ligar para a engenheira Rosemary, respirando bastante aliviado, ao saber que o prezado João Victor estava tranqüilo.
Pois bem, aquilo que poderia ter se tornado um martírio de aborrecimento, levou-me a refletir que existem seres honrados, prestativos, acolhedores, preocupados com o bem estarem alheio, trafegando embaixo do firmamento. Caso houvesse mais indivíduos desse quilate, a Terra brilharia mais que o Sol. Fica aqui o meu agradecimento para essas pessoas que sempre arranjam um tempo para as delicadezas da vida.