Areias Monazíticas
Navegando semana passada pelo litoral de Guarapari, meu coração se lambuzava de emoções colhidas pelos olhos pousados sobre suas paradisíacas praias, enquanto meus pensamentos, inebriados pela exaltação da memória, pulavam de um lado para outro entre o presente e o passado, sem cerimônia. Lá estava eu pela primeira vez e com apenas nove anos de idade, deitado, ou melhor, enterrado até o pescoço sob aquela misteriosa e pegajosa areia preta. Meus mineiros tios cantavam loas às propriedades medicinais das areias monazíticas. Diziam que curava tudo: reumatismo, diabetes, hipertensão e até infecções. Apesar de jovem e de gozar de plena saúde, adorava chafurdar naquela espécie de lama terapêutica.
Em menos de um segundo meu pensamento queima 15 anos de memória e agora estou me vendo cursando o terceiro ano de medicina. Meu solene professor de gastroenterologia descreve um caso de hepatocarcinoma. Ele frisa categoricamente sobre o aumento dessa patologia nos moradores de Guarapari. Argumenta que os efeitos radioativos da areia monazítica inibem a divisão celular (mitose), favorecendo a baixa de imunidade. Nesse instante as lembranças vasculham meus 27 anos de exercício médico sem encontrar um só caso de câncer do fígado causado pela cidade das garças rosadas.
Meus pensamentos teriam continuado pulando entre essas duas maravilhosas épocas, mas, interrompidos pela presença de um navio cargueiro, eles alçam vôo para o início do século passado. O extraordinário do pensamento é poder viver numa época em que o próprio pensador ainda não tenha nascido! Corria o ano de 1906. Guarapari era uma aldeia rústica perdida no litoral do Espírito Santo. Mesmo assim, as propriedades radioativas das suas areias já eram conhecidas lá no estrangeiro. Uma empresa de nome MIBRA (Monazita Ilmenita do Brasil) se instalou na ensolarada cidade fundada pelo Beato Anchieta. A princípio sua atividade era extrair o elemento tório para fabricação das camisas incandescentes utilizadas nos lampiões á gás, já que toda iluminação residencial era naquela época gerada por esses lampiões.
Interessante observar que mesmo depois do aparecimento da luz elétrica, a empresa MIBRA continuou exercendo suas atividades. Além da extração local do Tório, ela transportava areia nos seus navios, rumo aos Estados Unidos. Justificava que a presença de areia nas embarcações era para gerar lastro – adequar o peso do barco ao equilíbrio. Na verdade a empresa estava comercializando essa rica fonte de elementos radioativos (monazita, zircônio e ilmenita) como matéria-prima para a fabricação de bombas atômicas, como aquelas que foram lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Naquela época ninguém tinha a menor idéia desse fato. Após o final da II Guerra Mundial, mesmo sendo desmascarada suas funções, a empresa se utilizou durante bastante tempo de recursos escusos junto a governantes corruptos para continuar saqueando nosso patrimônio mineral e ecológico. Felizmente, na década de 50, um ilustre vereador, com visão ambiental, resolveu intervir. Movendo os céus e a terra, promoveu comícios de protestos, simpósios de esclarecimentos, sessões de denúncias, despertando a imprensa brasileira para o caso. Enfraquecida pela impopularidade, devassada pelas denúncias e coagida pela legislação, a MIBRA fechou suas portas.
Recapturando meus pensamentos perdidos na memória, ainda queimo uma grande quantidade deles para tentar entender um país belo e rico como o nosso, que continua patinando na corrupção, reeditando suas mazelas, como faz o PT nesse momento. Meus aplausos ao vereador Manuel Moreira Camargo, que expulsou a MIBRA de Guarapari.
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