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Dr. João Evangelista
Gastro-enterologista

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Bicho Homem

Estavam todos sentados ao redor da fogueira, naquela noite. Corria o ano de 1920. Meu pai, Braulino, curioso como todo moço de 17 anos, escutava os circunstantes relatarem suas histórias. Após ter ouvido várias narrativas, criou coragem e resolveu contar um caso que havia acontecido com ele, tempos atrás. Depois que todos se acomodaram sobre um novo tronco de árvore, que servia de assento, pois o primeiro tratava-se de uma imensa sucuri, que derrubou todo mundo no chão, depois que ela, incomodada com o calor das chamas, começou andar, meu pai iniciou sua exposição: - Já passava de meia noite, disse ele, quando eu resolvi pegar o caminho de volta para casa, esquecido das horas, cantando modinhas, dedilhando o violão, embaixo das janelas das sinhás. Os lampiões de querosene ardiam no alto dos postes, ao longo das ruas, competindo com a lua, criando um cenário de mistério e sedução, tão admirados por nós, jovens. Como eu moro a uma distância de cinco quilômetros do povoado e necessitava chegar cedo em casa, montei na sela do cavalo e parti, seguindo a trilha banhada pelos raios do luar. Embebido de orgulho e paixão, cantava minhas árias, tangidas no coração, acompanhadas pelo ritmo do trotar da montaria e pelas rajadas do vento batendo no meu rosto. Embora eu e meu cavalo estejamos acostumados com a penumbra da noite, confesso que existe um trecho próximo à minha casa, que me provoca arrepios. Nesse lugar, a trilha fica bastante estreita devido ao enorme bambuzal que margeia ambos os lados do caminho. Aproximando-me do local, percebi que minha montaria começou ficar nervosa, parando e empinando, enquanto eu, usando a espora, forçava o animal a continuar. De tanto açoda-lo, ele finalmente seguiu seu trajeto, tentando atravessar aquela região, o mais rápido possível. A vereda estava muito escura e eu já não enxergava quase nada. Nesse momento, algo pulou, do alto do bambuzal, sobre minha garupa e, rapidamente, entrelaçou seus braços ao redor de minha cintura. Apavorado, eu tornei fincar a espora no animal, até sangrá-lo. Tão desesperado quanto eu, resfolegando, ele correu desembestado. Seus olhos, injetados de sangue, brilhavam de maneira sinistra e agourenta. Enlouquecido de terror, sentia aquelas mãos apertando, cada vez mais, minha cintura, enquanto seu hálito fétido arrepiava minha nuca. Olhando para o lado, eu via o contorno daquelas unhas enormes, engastadas naquelas mãos cabeludas, antecipando dois braços negros e ameaçadores; todos formando um quadro macabro, comprimindo minha cintura, dificultando-me respirar. Confesso não saber de onde tirei tanta coragem para continuar mantendo o cavalo sob controle. Amedrontada, até a lua havia se escondido, abandonando as trevas e seus miasmas. Passado algum tempo, relinchando desesperado, o alazão saiu debaixo do bambuzal, conseguindo se desvencilhar daquele espectro sinistro e pavoroso que, rapidamente, pulou de cima da sela, em direção ao mato. Quando chegamos à entrada da casa, tanto eu, como meu cavalo, estávamos trêmulos; eu arfando e ele escumando pela boca.

Dias depois, Juca, meu velho e experiente pai, informado do episódio, se aproximou de mim e disse que, provavelmente, teria sido um grande macaco, comum naqueles bambuzais, que pulou sobre a sela, quase nos matando de medo.

Ao encerrar o relato desse acontecimento, meu pai percebeu que todos os ouvintes permaneceram perplexos durante bastante tempo.

Hoje, morrendo de saudades dele, eu pedi licença à memória e parti de volta para o ano de 1920. Por sorte, consegui desembarcar exatamente naquele local, naquela noite, ao redor daquela fogueira. Parece mentira, não é mesmo? Mas a saudade consegue evocar lembranças e produzir milagres inacreditáveis. Para evitar maiores complicações, evitei dizer quem eu era; mas meu pai, emocionado, logo veio abraçar-me. Passados alguns minutos, eu pedi a palavra e disse: Vou narrar um caso bastante inverossímil: - Sexta-feira, dia ensolarado, 10 da manhã no Cercadinho, um dos bairros mais calmos de Vila Velha, onde nasci, cresci e tanta paz encontrei, chegam de carro, meu irmão e seu filho de seis anos, para visitar nossa velha mãe. Surgindo do nada, dois assaltantes apontam seus revólveres na direção deles e, ameaçadoramente, pedem as chaves do veículo. Em segundos, partem em disparada, deixando para trás, perplexidade, revolta, impotência, descrença, medo e frustração, esses temperos do mundo atual, que deixam um travo amargo na boca e coagulam a alma. Eis o ser humano, esse maior inimigo do ser humano!

Estupefato, alguém perguntou: De onde você trouxe essa história, tão mirabolante?

Eu respondi: De 2010!

Antes que o Tempo, tentando evitar que eu afogasse nas lágrimas do reencontro, me trouxesse de volta, ainda pude verificar, no meio daqueles olhares de espanto, os olhos tão azuis e marejados do meu pai.

 

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