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Dr. João Evangelista
Gastro-enterologista

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Maria Magrela

Tão fidedigno quanto à variação de forma das nuvens no céu, é a mudança de visão e opiniões que temos ao longo da vida.

A dinâmica da existência nos faz rever conceitos e valores que antes julgávamos irretocáveis.

Talvez as duas coisas que mais dificilmente lidamos durante essa jornada sejam: o AMOR e a MORTE.

Quando crianças, aprendemos duas frases que formam os postulados da ética, religião e moral:

- Se você for bonzinho, quando morrer irá para o céu! Caso contrário virará churrasco no inferno! Os adultos estavam sempre a nos lembrarem dessa profecia.

Dentro das minhas limitações e fantasias, pensava e questionava:

Mas tudo que é bom leva a gente para o inferno!  Dormir tarde, fazer guerra de travesseiros, olhar, pelo buraco da fechadura, a prima tomar banho.

Mentalizava o inferno com o diabo correndo atrás da gente, espetando nosso bumbum com  aquele garfo enorme!

Quanto ao céu, era chato, apesar de bom. A gente poderia passear nas nuvens, comendo algodão doce e também voar. Mas era uma chatice o dever de casa para se preparar para ao céu, aqui na terra.

Não se podia responder aos mais velhos, mesmo estando eles sem razão. Também tínhamos que rezar todos os dias, dividir os brinquedos com nossos irmãos.

Cresci com esses paradigmas: Céu=amor, inferno=morte!

Um dia, lá pelos meus treze anos, conheci um anjo denominado: “primeira namorada”.

Sentados no banco da pracinha, olhávamos o firmamento. Resolvi então subir no encosto do banco de cimento. Ficando nas pontas dos pés, estiquei a mão, colhi uma estrela no céu e dei pra ela. Descobri nesse momento, que já não precisaria morrer para alcançar o céu! Eu estava no céu! Melhor dizendo, no paraíso!

Fui crescendo, até que tive contato com a morte. Perdi um amigo de quatorze anos. Renatinho. Morreu queimado.

Resolvi então bolar um jeito de driblar a Morte, caso ela aparecesse. Pensei: - No dia em que Maria Magrela vier me buscar, vou fingir estar morto. Ela, como empregada do Tempo, irá me conduzir à sua presença. O Senhor Tempo, seu patrão, verá então que eu estou vivo e, sem perda de tempo, digo, de si mesmo, demitirá sua funcionária, a Morte. Esta terá de me trazer de volta e eu nunca mais irei morrer! Abaixo Maria Magrela!

O tempo, que não para no porto, não apita na curva e não espera ninguém, passou...

Resolvi estudar medicina. Nada melhor para não temer a morte, do que entender a vida.

Do alto da minha prepotência, aprendi como tratar doenças. Junto ao doente, examinava suas enfermidades, seus padecimentos.

Um dia, DEUS, cansado da minha arrogância, resolveu me dar uma lição!

Estava eu no sexto ano, fazendo internato em Gastroenterologia quando, numa manhã, deu entrada em nossa enfermaria um senhor de nome Frederico. Sofria ele de Câncer hepático, doença incurável, espoliante, que ràpidamente debilita e mata o paciente.

Todos os dias eu ia colher sua história clínica, solicitar novos exames e medicá-lo. Rotineiramente fazia isso e repetidamente ouvia dele:- Dr. João! Deixe-me morrer em casa?!

Ora Seu Frederico! A gente está cuidando bem do Sr! Todos os recursos estão presentes na ordem do dia! Não te falta atenção, fármacos, exames...

Dr. João! Deixe-me morrer em casa?!  Os dias foram passando. As semanas se somando, até que, numa manhã, uma das enfermeiras do departamento de Gastroenterologia  entrou correndo no ambulatório anexo, onde eu me encontrava e aflita falou: -Corra, Dr. João! O Sr. Frederico está passando mal!

Chegando rapidamente ao seu leito, segurei em suas mãos e perguntei: - O que sentes meu amigo? Com as mãos trêmulas pelo medo, o peito arfando de angústia, os olhos marejados de tristeza, ele balbuciou:- Eu queria tanto morrer em casa!  E expirou...

Aquele brilho no seu olhar, antes de se apagar definitivamente, formara com o reflexo da lágrima, um espelho, onde eu podia ver minha imagem. Era a dor ...o desespero...a frustração...a revolta..Não era mais eu.

Desolado, fui procurar o Professor Chefe da Cadeira. Após ouvir meu relato atentamente, procurou me consolar usando frases elaboradas tais como: - O paciente era terminal...Sua doença, incurável...Pior seria ficar sofrendo!...

À noite, em casa, minha pequenez se agigantou. O Sentimento de culpa clareava minha percepção. A dor entorpecia minha arrogância.  Entendi, abençoado, a sutil diferença entre DOENÇA e DOENTE. A doença não entra sozinha no hospital ou consultório. Entra junto a um ser humano. É o doente , que sorri, chora, tem medo, esperança.

A doença traz dor, febre, astenia, vômitos, diarréia. O doente traz aflições, apreensões, insegurança. Mas carrega também sua fé!

Ao Sr. Frederico já não interessava mais sua doença. Importava o pouco de vida que ainda lhe restava. Precisava fazer as pazes consigo próprio.

O doente vencido pela doença se preparava para partir. Necessitava nesse momento, de calor humano e dignidade, buscando assim coragem para morrer. Chamava atenção, não  para o  seu corpo, mas pela sua alma. A doença ficaria com seu organismo, mas o doente se preparava para DEUS! Consciente de sua situação, não mais queria remédios, curativos, paliativos...Queria uma mão que o segurasse  e  ajudasse executar  a  tarefa mais difícil da vida: -Morrer!!!

Percebi com isso o que significa TERAPEUTA: TERA=DEUS,

PEUTA=Que trata em nome!

“SEDARE DOLOREM OPUS DIVINUM EST” (Curar a dor é obra de Deus).

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