The Beatles
A vida é essa. É um minuto que se vai depressa. Todos nós temos o nosso momento. Depois, o esquecimento.
No exato momento em que a NASA lança a música “Across the Universe” em direção a Estrela Polaris, para onde chegará daqui a 431 anos, meu coração também viaja carregado pela memória em direção ao passado. A bela canção de Lennon e McCartney juntará essas duas estrelas que brilharam aqui na Terra com aquela tão longe, tão misteriosa, tão desconhecida, que pisca lá no céu. “Através do Universo”, como diz o título, está se deslocando a 300.000 km/s. Parece uma velocidade incrível! Nem tanto. Minha memória consegue voar mais rápido. Utilizando a velocidade do pensamento, ela viaja 40 anos em direção ao passado, lá chegando numa fração de milésimo de segundo, mesmo se atrasando um pouco ao passar pelos meus marejados olhos e parando para socorrer meu emocionado coração.
Muitos dirão que foram os Beatles uma banda comportada e criativa, geradora de belas canções com suas letras bobinhas, que surgiu num momento em que o mundo havia se cansado dos heróis da Segunda Guerra, dos estereótipos cristalizados pela valentia, pela disciplina, pelo patriotismo e pela melancolia dos dramas vividos nas batalhas. Nesse vácuo nasceu Elvis Presley, cheio de gingas, trejeitos e rebelde. Depois surgiram os Beatles preenchendo, com fantasias e sonhos, o coração dos jovens cansados dos modelos ultrapassados da dura realidade que vivera a cidade de Liverpool, bombardeada pelos nazistas. Esses apelos se espalharam pelo mundo, embalados por gostosas melodias.
Quando alguém me pergunta se eu também fui um garoto que amava Beatles e Rolling Stones, eu apenas repito aquilo que toda minha geração exalta: Eu cresci ouvindo Beatles. Bom ou ruim, eu temperei meus devaneios com suas baladas. Dançando seus ritmos, enlacei meu corpo borbulhando seus hormônios nas sinuosidades generosas das belas garotas, que também exalavam seus feromônios. Eu não faço nenhum comentário de valor sobre aqueles Beatles armazenados nos arquivos do tempo. Este implacável “dono do mundo” sempre apaga o superficial e marca o profundo. O que me importa é a impressão que essa banda causou na minha vida. Aquilo que vale dentro do tempo de um ser humano é tão somente a eternidade que estacionou no seu tempo feliz.
Assim como uma bela música é aquela da qual, em geral, se ouve dizer: “Estou reouvindo” e nunca “Estou ouvindo”, uma bela lembrança é aquela que insiste continuamente em retornar ao presente.
Sei também que os fatos da juventude podem ter pouco valor, pela impaciência, pela distração e pela inexperiência da vida; por esse motivo o pensamento amadurecido no tempo possui um sabor mais penetrante.
Cada ser humano oculta, dentro de si, um manancial de pensamentos adormecidos nas dobras da memória, mimetizando eles com o inconsciente coletivo ou guardando para si. A bela Ave Maria de Schubert, a majestosa Nona Sinfonia de Beethoven, a delicada Imagine de John Lennon, são patrimônios da humanidade. Fazem tanger cada fibra do nosso coração, provocando ressonância na alma, enquanto compartilha seus sons em comunhão com a nossa imaginação. Por essa razão visitamos tanto o passado. Todo pensamento somente voa lá pra frente utilizando o combustível lá de trás.
Bilhões de anos atrás uma estrela se apagou. Sua luz, entretanto, continua percorrendo distâncias incomensuráveis. Ela iluminou o paraíso de Adão, o padecimento de Cristo, os delírios da inquisição, o acordar da razão pela insensatez de tudo disso. Ela fez brilhar as Caravelas de Cabral, a perplexidade dos índios frente ao homem mau, os amores dos menestréis, as desilusões dos abandonados, a maldade de certas bênçãos, a bondade de certos pecados e a inocência do que eu e você já fomos. Talvez, essa seja a Estrela Polaris. Por isso, nós estamos enviando essa melodiosa centelha que ela deixou há quarenta anos, quando por aqui passou. Esperamos que essa luz encontre outras através do universo.