Um bom filho da PUC
Natal de 1978. Eu acabara de me formar em medicina. A arte é longa, a vida é curta. Após seis longos anos, teria ainda de fazer pós-graduação para sedimentar meus conhecimentos. Para esse fim, prestei um novo vestibular e acabei sendo aprovado. Tornei-me um filho da PUC. Exultava de orgulho e vaidade. Por outro lado, meu coração sangrava. Eu havia terminado um breve namoro de quatro meses, que tanto me marcou. Tão efêmero o amor e tão longo o esquecimento! Enquanto as demais pessoas ainda festejavam o natal, meu ser clamava pela chegada do ano novo. Despedindo-se de mim, de pé na plataforma da rodoviária, alguns amigos, confundindo a esperança nos meus olhos com o desalento do meu coração, diziam que eu estava amando. Sim, eu estava amando... a mando do capeta!
Calma, disse um deles: Você sabe o que você tem que sua namorada não tem? Eu respondi: Não! Tem que se lascar!
Deus me fez sem aquele charme irresistível, arma tão necessária para conquistar as princesas, mas me indenizou com a inteligência.
Nove horas depois, eu rio, já estamos em janeiro: Rio de Janeiro! Quedo-me, boquiaberto com a Cidade Maravilhosa. Olhava, fascinado, para o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor! Sorria frente à irreverência do carioca: Ao meu lado, um apressado passageiro pergunta para o motorista do coletivo: Esse ônibus vai para a praia?
-Bem, se você arranjar um calção que caiba nele!
Os dias se passam e eu, que devia uma homenagem à minha auto-estima, fui pagando a dívida alimentando o coração com novidades. Estudei bastante. Assistia a aulas pela manhã, freqüentava ambulatórios durante a tarde e cobria plantões em pronto socorro noite adentro monitorado por grandes e inesquecíveis mestres. Não recebia nenhum dinheiro, entretanto, cada vez mais me nutria de ciência e experiência.
Um belo dia, durante uma palestra, o professor discorria sobre “sístoles” e “diástoles”, esses batimentos cardíacos tão vitais. Eu comentei que o intervalo de som existente entre os dois ruídos é de uma “quarta justa”, representando as notas musicais “si” e ”mi”. Questionou: Como você sabe disso? Afirmei ter conhecimento de acústica, porque estudava piano. Ele declarou que sua esposa era pianista e, com isso, acabei me tornando seu pupilo predileto. Além de jantar e tocar piano em sua residência quase toda semana, fui convidado para atender em seu consultório particular e faturar uns trocados. “O paciente particular paga para não esperar”. “O paciente do SUS espera para não pagar”. Quem não gosta e não necessita de dinheiro?! Apesar disso, eu exalto a sabedoria e a erudição. Quanto vejo um milionário falando errado e desprovido de cultura, eu digo: Você não é rico! Você é apenas um pobre que tem dinheiro!
Mesclados à seriedade das aulas, também ocorriam fatos hilários e inusitados. Durante o atendimento no ambulatório de psiquiatria, observei, numa tarde, um paciente se sentar e queixar para o médico: Doutor! Ninguém liga mais pra mim! Ninguém me dá mais atenção! Ninguém me nota! Depois de olhar, durante um segundo, para ele, o psiquiatra vira-se para a secretária e diz: Mande entrar o próximo!
Minutos depois, a atendente entra na sala e diz: Doutor: tem uma mulher lá fora dizendo que é invisível! O psiquiatra responde: Diga a ela que agora eu não posso vê-la.
Numa certa manhã de domingo, recebo, logo cedo, um telefonema do titular da cadeira de clínica médica, solicitando que eu atendesse um paciente em casa. Sem pestanejar, peguei minha maleta e parti para o endereço informado. Passei longas horas entrando e saindo de ônibus e quando percebi estava dentro de uma favela, cercado por indivíduos armados e mal encarados. Conduzido por eles, atravessei vielas estreitas, parando a todo instante para que eles pudessem trocar tiros com a polícia. Com o coração descompassado, finalmente chegamos a uma pequena casa onde me deparei com uma senhora bastante idosa deitada no chão e apresentando um quadro de derrame cerebral. Seus sinais vitais estavam bastante comprometidos. Examinei cuidadosamente a paciente e logo constatei que suas chances eram mínimas. Antes mesmo de repassar seu estado dramático para os familiares, fui puxado para o quintal localizado atrás do barraco e envolvido num ritual de candomblé. Depois de fumar aquele charuto que passava de boca em boca, e beber talagadas de cachaça, alguém disse que o “caboclo” iria me ajudar no tratamento da paciente, pois eu era “Filho de Ogum!” Respondi: Só se for de “ogum retardado”. Eu afirmei que seria mais prudente ser auxiliado por uma ambulância, já que a enferma necessitava internamento urgente. Lá fomos nós, eu e aquela facção do comando vermelho, com seus fuzis AR15, em direção ao hospital. Após peregrinar durante horas, consegui uma ambulância e internei a pobre senhora. De tanto andar e suar, surgiu uma sede intensa. Paramos num bar e eu pedi uma “coca”.
Exclamou um dos traficantes: Doutor, se minha avó salvar, eu te dou um quilo! Caso contrário é melhor o senhor pedir ao garçom uma “porção de vidro moído”.