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Dr. João Evangelista
Gastro-enterologista

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O discernimento da loucura

Quando eu era Acadêmico de Medicina, me fascinava o comportamento dos pacientes durante as aulas de Psiquiatria.

Uma vez, colhendo a história clínica de um deles, eu indaguei: Conte-me tudo desde o princípio.

Bem, doutor: No princípio eu criei o Céu e a Terra.

Tempos depois, voltei encontrá-lo e perguntei: Além do Céu e da Terra, o que mais o senhor anda criando?

Doutor, eu inventei um objeto que permite enxergar através das paredes.

É mesmo! E como vai se chamar esse objeto?

Ele respondeu: Janela!

Desde então, eu venho encarando a loucura com certa reverência. Ela rouba a lucidez do indivíduo, mas costuma deixar alguma lógica na sua mente.

Nós, médicos, somos meio fascinados pela loucura e, por que não lembrar que: de médico e de louco, todos nós temos um pouco!

Diz a secretária para o psiquiatra: Doutor: Tem uma mulher lá fora dizendo que é invisível!

Diga a ela que agora eu não posso vê-la, rebateu o médico.

Qualquer pessoa que observe um louco encontrará em seu semblante algo misterioso, divino e feliz. A lucidez vive de acordo com as regras da razão. O louco navega ao sabor das paixões.

Frequentemente nós ouvimos alguém, apaixonado, dizer: Eu sou louco por fulano!

Por outro lado, sob a égide da razão, reclamamos: Este problema está me deixando louco!

Todo Gênio tem algo de louco no seu DNA.

Deus criou a razão num cantinho da cabeça e espalhou para o resto do corpo, através do coração, a semente da loucura.

A loucura não vive de razão; ela se alimenta de emoção. Está certo que perder o controle sobre os sentidos é temerário e catastrófico; mas de que consiste, afinal, a vida humana; não seria ela uma encenação?

Cada ser humano é diferente do outro e a própria vida nos faz representar um papel defensivo, diverso de nós mesmos e sempre mascarados. Vivemos essa comédia, pelo menos enquanto o Criador, lá em cima, não nos faz descer do palco.

A razão, com suas infâmias, suas censuras, suas violências, seus pecados, não agride o louco, pois ele não conhece isso, e se não o sente, deixa de ser um mal.

Observe uma criança brincando. Tudo aquilo que ela inventa, vive e curte, é cheio de fantasia e faz-de-conta. Mande um adulto agir assim; ele será taxado de louco.

Reclama um louco que se curou: Vocês me tiraram à ilusão que constituía toda minha felicidade.

Tem que existir equilíbrio entre razão e emoção. Se a emoção reina sozinha, ela arde até a sua própria destruição. Entretanto, se a razão governa absoluta, ela cristaliza toda iniciativa, bloqueia e anula todos os sonhos e ilusões.

O ser humano é tanto mais feliz quanto mais são numerosas as suas modalidades de loucura.

Lotam-se barzinhos, templos religiosos e shoppings comerciais. Pessoas correm pra lá e pra cá, trabalhando, adquirindo, gastando, se entediando. Essa maluquice é nossa vida diária.  Seu paladar precisa do condimento da loucura. Temperamos a vida para fugir das aflições, das inquietações e da tristeza; essas filhas perversas da razão.

Qualquer orador que se vale apenas da razão, não prende a atenção. Aquele que aborda um assunto com o enfado da lógica faz o auditório dormir, bocejar, tossir e enjoar. Se, porém, o narrador conta uma história mirabolante, uma fábula, uma lenda, então o auditório logo se agita, os dorminhocos despertam, todos levantam a cabeça, arregalam os olhos e prestam atenção. Abençoada loucura! Enquanto isso, a razão continua acreditando que um dia o diabo ainda vá se arrepender e pedir perdão a Deus.

Obs.: Dentro de alguns meses, a Associação Médica Brasileira (AMB) fundará, no Espírito Santo, a Academia Capixaba de Médicos Escritores. Eu terei a honra de ocupar a Cadeira Número 01. Durante mais de 15 anos, venho (e continuarei) escrevendo, religiosamente, minhas crônicas no Jornal da Praia da Costa. Além da imensa satisfação que esta atividade me presenteia, devo lembrar que foi junto à AMPC que desenvolvi meus recursos literários. Entre tantos outros benefícios que esta entidade oferece à nossa população, para mim tem sido uma verdadeira escola.
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Bicho Homem

Estavam todos sentados ao redor da fogueira, naquela noite. Corria o ano de 1920. Meu pai, Braulino, curioso como todo moço de 17 anos, escutava os circunstantes relatarem suas histórias. Após ter ouvido várias narrativas, criou coragem e resolveu contar um caso que havia acontecido com ele, tempos atrás. Depois que todos se acomodaram sobre um novo tronco de árvore, que servia de assento, pois o primeiro tratava-se de uma imensa sucuri, que derrubou todo mundo no chão, depois que ela, incomodada com o calor das chamas, começou andar, meu pai iniciou sua exposição: - Já passava de meia noite, disse ele, quando eu resolvi pegar o caminho de volta para casa, esquecido das horas, cantando modinhas, dedilhando o violão, embaixo das janelas das sinhás. Os lampiões de querosene ardiam no alto dos postes, ao longo das ruas, competindo com a lua, criando um cenário de mistério e sedução, tão admirados por nós, jovens. Como eu moro a uma distância de cinco quilômetros do povoado e necessitava chegar cedo em casa, montei na sela do cavalo e parti, seguindo a trilha banhada pelos raios do luar. Embebido de orgulho e paixão, cantava minhas árias, tangidas no coração, acompanhadas pelo ritmo do trotar da montaria e pelas rajadas do vento batendo no meu rosto. Embora eu e meu cavalo estejamos acostumados com a penumbra da noite, confesso que existe um trecho próximo à minha casa, que me provoca arrepios. Nesse lugar, a trilha fica bastante estreita devido ao enorme bambuzal que margeia ambos os lados do caminho. Aproximando-me do local, percebi que minha montaria começou ficar nervosa, parando e empinando, enquanto eu, usando a espora, forçava o animal a continuar. De tanto açoda-lo, ele finalmente seguiu seu trajeto, tentando atravessar aquela região, o mais rápido possível. A vereda estava muito escura e eu já não enxergava quase nada. Nesse momento, algo pulou, do alto do bambuzal, sobre minha garupa e, rapidamente, entrelaçou seus braços ao redor de minha cintura. Apavorado, eu tornei fincar a espora no animal, até sangrá-lo. Tão desesperado quanto eu, resfolegando, ele correu desembestado. Seus olhos, injetados de sangue, brilhavam de maneira sinistra e agourenta. Enlouquecido de terror, sentia aquelas mãos apertando, cada vez mais, minha cintura, enquanto seu hálito fétido arrepiava minha nuca. Olhando para o lado, eu via o contorno daquelas unhas enormes, engastadas naquelas mãos cabeludas, antecipando dois braços negros e ameaçadores; todos formando um quadro macabro, comprimindo minha cintura, dificultando-me respirar. Confesso não saber de onde tirei tanta coragem para continuar mantendo o cavalo sob controle. Amedrontada, até a lua havia se escondido, abandonando as trevas e seus miasmas. Passado algum tempo, relinchando desesperado, o alazão saiu debaixo do bambuzal, conseguindo se desvencilhar daquele espectro sinistro e pavoroso que, rapidamente, pulou de cima da sela, em direção ao mato. Quando chegamos à entrada da casa, tanto eu, como meu cavalo, estávamos trêmulos; eu arfando e ele escumando pela boca.

Dias depois, Juca, meu velho e experiente pai, informado do episódio, se aproximou de mim e disse que, provavelmente, teria sido um grande macaco, comum naqueles bambuzais, que pulou sobre a sela, quase nos matando de medo.

Ao encerrar o relato desse acontecimento, meu pai percebeu que todos os ouvintes permaneceram perplexos durante bastante tempo.

Hoje, morrendo de saudades dele, eu pedi licença à memória e parti de volta para o ano de 1920. Por sorte, consegui desembarcar exatamente naquele local, naquela noite, ao redor daquela fogueira. Parece mentira, não é mesmo? Mas a saudade consegue evocar lembranças e produzir milagres inacreditáveis. Para evitar maiores complicações, evitei dizer quem eu era; mas meu pai, emocionado, logo veio abraçar-me. Passados alguns minutos, eu pedi a palavra e disse: Vou narrar um caso bastante inverossímil: - Sexta-feira, dia ensolarado, 10 da manhã no Cercadinho, um dos bairros mais calmos de Vila Velha, onde nasci, cresci e tanta paz encontrei, chegam de carro, meu irmão e seu filho de seis anos, para visitar nossa velha mãe. Surgindo do nada, dois assaltantes apontam seus revólveres na direção deles e, ameaçadoramente, pedem as chaves do veículo. Em segundos, partem em disparada, deixando para trás, perplexidade, revolta, impotência, descrença, medo e frustração, esses temperos do mundo atual, que deixam um travo amargo na boca e coagulam a alma. Eis o ser humano, esse maior inimigo do ser humano!

Estupefato, alguém perguntou: De onde você trouxe essa história, tão mirabolante?

Eu respondi: De 2010!

Antes que o Tempo, tentando evitar que eu afogasse nas lágrimas do reencontro, me trouxesse de volta, ainda pude verificar, no meio daqueles olhares de espanto, os olhos tão azuis e marejados do meu pai.