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Dr. João Evangelista
Gastro-enterologista

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Religiosidade postiça

“Ó Babilônia, feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar contra a rocha!”

Moradores assustados, transeuntes assaltados, motoristas encurralados, idosos, no seu sossego, desrespeitados, doentes, de ambulância, privados; estamos diante de uma nova “Babel” denominada “Jesus Vida Verão”.

Nem todo aquele que grita: Meu Deus! Meu Deus! Entrará no reino do céu. Quando Jesus queria comunhão com o Pai, procurava o silêncio do deserto e a solidão das montanhas. Louvemos ao Senhor, mas tomemos o mingau escaldante da paixão, pelas beiradas, para não queimar nossa fé lá onde a lareira do inferno aquece a brisa do céu. Aos que pensam que tudo são palavras, restam apenas às palavras. Não adianta trocar Pôncio por Pilatos.

Meus sinceros respeitos aos verdadeiros Filhos de Deus, mas religião é como remédio; quando aplicado em excesso, intoxica. Sempre tive muito receio de atitudes fanáticas. Pessoas desse tipo parecem que estão se desculpando pelo que fizeram ou pelo que estão pensando em fazer.

Espetáculos religiosos, pregações pirotécnicas, transes histéricos, milagres ribombantes, alaridos hipnóticos, malabarismos circenses, entre outras comoções espirituais, fogem da percepção que eu tenho de Deus: Silencioso, Harmonioso e Austero. Quando alguém pediu ao flamboyant: Fale-me de Deus! Silenciosamente, ele cobriu-se de flores.

A fé é mais importante que a crença. Fé significa firmeza, equilíbrio. Crença é quando alguém pensa por nós. Muitos se mantêm acordados na escuridão e dormindo na luz.

Perdido nessas elucubrações mentais, meus olhos atravessam o fervilhante calçadão da Praia da Costa, indo pousar numa barraca, onde um dragão pede uma água de coco. Sim! É isso mesmo! Um dragão!

-Quanto é a água de coco?

-Dez reais.

-Eu quero uma. Depois de servi-lo, o vendedor comenta: É a primeira vez que eu vejo um dragão tomando água de coco!

-Pois é: por esse preço certamente vai ser a última. Virando-se para mim, o estranho réptil indaga: Que bagunça é essa aí?

Eu respondo: “Jesus Vida Verão”

Uai! Por que essa gritaria toda, essa fascinação, essa idolatria por aquele jovem lá em cima, cantando e fazendo mesuras?! A Bíblia Sagrada não diz: “Eu sou o Senhor teu Deus que te tirei da casa da servidão; não terás outros deuses diante de Mim?!”

É a vaidade humana... É a vaidade humana...

-Que história é essa que ouvi, ainda há pouco, sobre o aumento no consumo de álcool e na venda de preservativos em farmácias da orla, no decorrer deste evento? Acaso não lemos no livro sagrado: Não cobiçarás e nem cometerás adultério?!

É a vaidade humana... É a vaidade humana...

-E essa miríade de assaltos! Por que tanto joio no meio do trigo?

É vaidade humana... É a vaidade humana...

Afinal, o que é a vaidade humana?

“Não terás outros deuses diante de Mim”. Dinheiro, status, poder e reconhecimento; vivemos alimentando esses deuses que crescem dentro de nós. Pedimos a Deus não que seja feita Sua vontade, mas sim que Ele aprove a nossa.

Afastando-se do carro do coco, antes que desaparecesse, eu pergunto: Afinal, quem é você? Seria aquele menino fantasiado de “cuca”, que anima as crianças naquele trenzinho?

Claro que não; eu sou o Dragão de São Jorge.

Dragão de São Jorge! O que te trouxe de um passado tão remoto?

Além de tomar água de coco, vim testar a fé daqueles que aqui estão. Como somente posso ser visto pelos olhos da fé, já percebi que você possui bastante dela.

-Por que você diz isso?

-Ora, só quem tem fé acredita que São Jorge desistiu de matar-me quando lembrei que ele era santo e, como tal, deveria perdoar-me.  Com isso, tornei-me imortal.

São Dragão? Só faltava essa!

“Para aqueles que crêem, nenhuma explicação é necessária; e para aqueles que não crêem, nenhuma explicação é possível!”

Agora vá para casa e medite. Evite comentar que conversou com um dragão. Você não seria compreendido. Muita luz é como muita sombra: não deixa ver. A verdadeira religião é a vida que levamos e não o credo que professamos. Herege não é aquele que arde na fogueira, e sim aquele que a acende.

E não se esqueça: Louvor é quando você fala com Deus. Meditação é quando você escuta Deus.  O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro! Águas agitadas mostram falta de profundidade! Não é o apito que põe o trem em movimento!

Lembre-se sempre:

Onde estará teu coração, aí estará tua oração.

Pode ser no cantinho do teu quarto, bem longe do calçadão.

Deixe essa festa prá lá, com sua falta de juízo.

Convide o Sol e o Mar, pra brincar de paraíso!

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Pra te encontrar no céu

Enercília Teixeira Guimarães; nome pouco conhecido, pessoa menos conhecida ainda, mas que ocupa todo o espaço do meu coração. Estava presente durante minha chegada neste mundo e me criou durante 56 anos. Faz parte daquele afortunado e minguado grupo de pessoas que alcançam 100 anos. Aos 101, acaba de sofrer um AVC Isquêmico. Seu lado direito está paralisado. Minha amada tia-mãe já não mais consegue deglutir alimentos e ingerir líquidos. Sendo gastroenterologista, corro em direção ao hospital com o objetivo de introduzir uma sonda naso-gástrica para que ela não morra de fome. Aquela pequena mangueira incomoda, irrita, migra de lugar, correndo risco de infecção, além de aumentar o sofrimento daquela mulher tão cara a minha vida. Por outro lado, nada fazer também gera tortura naqueles que observam o sinistro espectro da morte delineando-se. Passado alguns dias resolvemos submetê-la a uma gastrostomia: abertura feita no estômago através do abdome, criando um novo trajeto para a sonda. Mesmo nutrindo seu corpo, notamos o rápido declínio de suas funções mentais. Impotentes, padecemos com a indecisão de Deus: se vai levá-la agora ou deixá-la mais um tempo conosco. Minha mãe geme suas orações, angustiada. Para reduzir o infortúnio do ser humano, vale o que funcionar, seja ciência ou religião. Com o emprego da alimentação enteral, o corpo tenta melhorar e os fluidos vitais voltam navegar pelas áreas hidratadas. Auscultando o bombear daquele débil coração enchendo as poucas artérias hígidas naquele cérebro danificado, meu estetoscópio enche o silêncio dos meus ouvidos com aquele pulsar, lembrando-me a fragilidade efêmera da existência.

101 anos! Aquele debilitado ser permanece lutando contra a morte. Seus ralos e brancos cabelos lembram o desgaste do tempo. Sua pele, enrugada, já não mais se arrepia com o sopro da vida. Sua coluna, arqueada, dobra-se pelo peso dos anos. Junto a sua cabeceira observa-se: antibióticos, pomadas, luvas, alimentos em latas, sondas, equipo de soro, colchões contra escaras, entre outras parafernálias. Nada disso adianta para o frágil sistema imunológico daquele corpo cheio de amor. Suas células já apresentam apoptose, essa triste programação da morte. Aquele meteoro vai riscando o tempo, usando sua reserva de energia para se sustentar e viajar.

Como médico, vejo o ciclo da vida se fechando. Como ser humano, necessito lembrar o limite entre continuar lutando, pagando a existência o preço do sofrimento de um corpo cansado, ou deixando-o partir com dignidade. Nesse momento a única maneira de suportar a vida é deixá-la.

Na velhice valemos pouco. O tempo cobra nossa vitalidade. Quando desembarcamos naquele porto, notamos que nossa moeda se desvalorizou. Poucos são aqueles que continuarão olhando o idoso, não pela capa do seu livro, mas pelas suas páginas. Ninguém se lembra de premiar um ancião pela sua jornada. O terceiro prêmio poderia uma rosa de ouro! O segundo prêmio, uma rosa de prata! O primeiro prêmio deveria ser apenas uma rosa, a verdadeira, feita por Deus!

Minha querida Enercília teve um derrame cerebral, doença que divorcia o corpo da mente. Agradeço aos meus colegas médicos pela atenção e pelo carinho que eles estão dispensando á ela. Enquanto isso, eu viro Medeor, aquele que cuida.  Minha missão vai mais longe, ultrapassando aquele cérebro lesado; meu sofrimento, também. Quem agora dedica abnegação ao amado enfermo é tão médico quanto filho.

Terça feira, 23 de dezembro, 9.30 da manhã. Lá vem a morte cobrar sua dívida. Ela não necessita mais de argumentar, pois encontra aquele ser querido, bastante debilitado e cansado. Eu penso em lutar mais uma vez contra essa fabricante de dor, mas seria desumano e egoísta. Embora a angústia que a morte provoca, guardando no seu ventre, tanto vazio e tanta saudade, conforta-me o morrer rápido e pouco agonizante.

Para onde vai minha tão protetora tia-mãe?A filosofia, a religião, o mistério; todos apresentam suas teorias. Meu lenitivo é olhar para o céu, para as estrelas, para o mar; lá estará ela. Cada pedacinho dela cintila nos meus olhos, nos meus gestos, na minha tristeza, na minha perseverança em continuar lutando para dar testemunho da rica história que ela foi e ensinou para mim. Necessito continuar lutando. Preciso continuar vivendo. Parece difícil; mas não é. Basta apenas ir gastando o amor que ela me deixou.