O paranóico mundo de hoje
Mal eu entro no carro e o celular começa tocar me fazendo desligar o motor e atender. Ouço minha amiga dizer que recebera a encomenda que eu havia deixado pra ela, minutos antes, com o segurança do seu prédio. Trata-se de um majestoso ovo de páscoa. Com a mesma tonalidade de voz que agradece, ela também reclama do chocolate que estava completamente amassado. Um tanto constrangido e chateado, eu tento explicar que o seu truculento funcionário, mesmo após eu ter apresentado um documento de identificação, apalpou o embrulho sem a menor cerimônia, verificando se não era uma bomba que havia lá dentro! Antes que ele emitisse voz de prisão, mandasse isolar a área, ou comesse o chocolate, eu viro de costas e me retiro do local.
Alguns minutos depois, torno a desligar o carro, não para atender novamente ao telefone, mas em virtude do brutal engarrafamento que toma a avenida na minha frente. Eu noto que todos estão bastante aflitos, preocupados, e irritados. Alguém explica a causa do congestionamento: Uma tentativa de seqüestro que se desenrola nas imediações. Policiais correm pelas ruas, viaturas ligam suas sirenes, crianças choram, motoristas descontrolados colidem seus veículos, cidadãos olham atônitos! Quedo-me silencioso e apreensivo no banco do carro, enquanto aguardo o desfecho. Em dado momento noto que todos batem palmas e se congratulam com os policiais. Eu vejo, com júbilo e orgulho, meliantes algemados desfilarem na minha frente em direção ao camburão. Soldados austeros guardam suas armas nos coldres. Com um misto de satisfação e reconhecimento, eu digo para o motorista ao lado: Valeu a pena ter esperado tanto tempo, preso no trânsito, não é mesmo?! Afinal, os policiais agiram com afinco e competência, prendendo todos os bandidos. Ele responde, com um sorriso de ironia: Não se trata de um seqüestro, mas de uma simulação. A polícia tem feito treinamentos para evitar seqüestros. Ah?! A cena era muito boa pra ser verdade!
Passado aquele momento de decepção e aborrecimento, rolo os pneus em direção a Vila Velha. Durante o trajeto, ligo a rádio CBN e ouço um ilustríssimo político, convidado para ser ministro da agricultura do governo Lula, em cujo currículo foi descoberto um processo sobre falsidade ideológica, dizer: Eu não entendo por que todo esse estardalhaço: Quem nunca teve um processozinho em sua vida?!
Perdendo a calma, eu grito: Eu não tenho! Eu nunca tive! Preciso ligar para Luis Inácio! Eu quero ser ministro!
Terminada a exaltação, com um travo de nojo na alma, eu mudo a sintonia do rádio. De nada adianta, pois lá está um famoso professor de marketing emitindo o seguinte parecer: Antigamente se inventava e fabricava algo visando preencher uma necessidade do ser humano. Hoje, cria-se qualquer coisa, e o mundo maravilhoso do marketing fica encarregado de inventar uma necessidade!
Naquele instante me veio à mente o trabalho que a indústria farmacêutica efetua com seus representantes. Alguns fármacos, mesmo depois de exaustivamente pesquisados, se mostram completamente inócuos na prática médica. Em vista disso, talvez seja melhor que eu, como médico, no lugar da droga, comece a receitar um propagandista para os meus clientes. Recheados com os princípios ativos do marketing, eles poderão facilmente debelar os males de quem padece, ou convence-los trocar de doenças!
Descendo do automóvel, ao abrir a garagem do meu prédio, eu observo, parado no sinal de trânsito, um indivíduo todo pintado de tinta prateada tentando, com seu andar e gestos, imitar um robô, para conseguir uns trocados. Deus do céu! Agindo como ser humano, ninguém consegue sensibilizar mais ninguém! O pobre pedinte teve que se tornar máquina para chamar atenção!
Enquanto a máquina pensa como gente, a gente pensa como máquina!
Eu ando com uma sensação de que o universo inteiro é um eterno faz-de-conta. Essa atitude vem assustando, cada vez mais, a honestidade. Atrás de cada sorriso adocicado eu interrogo: Honestidade, você está aí ou não está?
Eu entro numa festa de aniversário e lá está o aniversariante plantado no meio da sala, com um copo de cerveja na mão e um intermitente sorriso amarelo nos lábios. Eu penso: Aqui também ela não se encontra!
Dizem que a honestidade se casou com a mentira e teve uma filha denominada hipocrisia! Essa astuta criança nasceu com uma cadeia de DNA formada por 50% de mentira e 50% de honestidade.
Entretanto, eu pergunto: Existe alguém que seja meio honesto?! Assim como, por exemplo, não podemos dividir em duas uma sensação, cindir a vida de um cavalo em dois cavalos, ou cortar em dois o instinto de um cão, não existe metade honesto. Ou alguém é honesto, ou não é!
Enquanto isso, o tempo vai passando e a paranóia se alastrando! Talvez lá no futuro, alguém perceberá que nossa era foi tão desastrosa, que dela irá escarnecer, afirmando que tudo era tão falso, pesado, incômodo, e estranho.
Triste época a nossa, em que existe um véu entre nós e nossos conhecidos, até mesmo os mais íntimos, turvando nossa imagem uns para os outros, como se nossa vida estivesse seguindo seu curso fora de nós, deformada pela mentira e abandonada pela honestidade!
Renunciamos o paraíso que tínhamos no coração!