Agruras de um cidadão
Ontem foi sexta feira. Um dia como todos os demais. Eu retorno do trabalho, faço meu lanche, ligo a televisão, e vejo as notícias de sempre: Político ladrão, que foi denunciado, continua solto; governo, com inveja do ladrão, aumenta os impostos; ladrão rouba cidadão dentro de shopping; ladrão rouba loja no centro; ladrão rouba loja na periferia; ladrão rouba loja maçônica; ladrão rouba policial armado; policial rouba o roubo do ladrão desarmado; ladrão rouba consciência do juiz e consegue cem anos de perdão. Desviando minha atenção dos olhos para os ouvidos, surge uma voz gritando: Pega ladrão! Levanto da cadeira, olho pela báscula do banheiro e vejo meu vizinho parlamentando com um meliante que insiste em quebrar o vidro do salão de festas do prédio, na tentativa de levar o que havia restado de outro assalto ocorrido no mesmo dia, pela manhã. O incrédulo morador argumenta: Vai embora, cara! Você chegou tarde! Seu colega, que aqui esteve hoje cedo, carregou o computador e duas botijas de gás!
O larápio, estalando a boca de contrariedade, fazendo gestos obscenos, chateado com a concorrência desleal, resolve partir. Acabo de tomar meu café enquanto penso: Amanhã é sábado. Irei dar um pulo em Domingos Martins. Talvez o clima ameno e a natureza bucólica daquele singelo lugar, aliviem meu estresse. Realmente surte efeito. Subir a serra areja os pulmões e oxigena o espírito. Passo um dia aprazível e salutar. Quando, finalmente, o sol começa deixar no céu aquele maravilhoso borrão cor de abóbora, traduzindo sua partida, eu levanto acampamento e parto de volta para Vila Velha. Revigorado, leve, calmo e tranqüilo, esquecido das agruras das cidades grandes, lá venho eu dirigindo meu automóvel, quando surge na minha frente um batalhão de carros de polícia fechando toda rodovia e gritando que todos recuem. Um grupo de assaltantes havia invadido uma empresa, e tornado reféns seus funcionários. Gritos de aflição, tiros pipocando por todos os lados, freadas bruscas de veículos; estou no meio do caos. Como não há jeito de retornar, contorno o asfalto e avanço em direção a rua que serpenteia um morro ao lado da rodovia. Quanto mais ouço o burburinho lá embaixo, mais rapidamente subo a ladeira tentando me proteger.
Em dado momento, eu noto que havia pulado da frigideira e caído dentro do fogo. Vou dar com meus costados numa favela, onde a maioria dos caminhos não possui saída. Surgem na minha frente: buracos pra todo lado, cachorros pra todo canto, e barracos pra todo lugar. É claro que milhares de pessoas de bem, gente humilde, e sem recursos, moram nesses locais, mas convém não esquecer que marginais, traficantes, e afins, costumam lá se esconderem. Quando dou por mim, já era tarde. Entro numa viela e topo com um barranco. Saio dela e entro num beco sem saída, indo parar na vertente do morro. Após várias tentativas, alguns indivíduos mal encarados começam me olhar e aglomeram-se no início da rua onde eu havia penetrado. Ao redor do morro, dezenas de bananeiras se perfilam nas encostas, convidando para aliviar minha cólica intestinal, fruto do cagaço.
Eu tento sair sem chamar atenção, mas os cachorros me deduram com seus latidos. Suando frio, dou marcha a ré e sou interceptado por quatro elementos que me fazem parar e vão logo dizendo: Se perdeu, não é? “Mané”! Tremendo cada fibra muscular do meu corpo, eu respondo, tentando inventar uma desculpa: Creio que sim. Eu vim buscar um “bagulho” e não estou conseguindo voltar! Como faço pra sair daqui? Sentencia o mais forte deles: “Mermão”! Negócio é o seguinte: Não dá pra oferecer segurança pro cliente, de dia! Vê se da próxima vez, venha durante a noite! Vai tentando que você acaba zarpando daqui, e cuidado com a rapa! Rapa? Sim a polícia, meu chapa! Zé! Leva o freguês lá embaixo, vociferou o “bom samaritano”. Trinta pratas foi o pedágio cobrado pelo Zé Lombriga. Diz ele: Ta barato, gente boa! Sim! Sim! Eu concordo. Vamos logo! Você é legal Eu vou te dar cinqüenta reais!
Depois de quarenta minutos de aflição, entrando e saindo nas mesmas ruas, eu descubro que o Zé, confortavelmente instalado no banco do meu carro, está com vontade de tirar um sarro da minha cara e brincar com o meu medo, antes de me liberar. Entre tantos pensamentos macabros que atravessam meu pobre cérebro, um martela sem cessar, o de morrer com um tiro, que seria mais honrado, ou tombar fulminado pelos eflúvios emanados das axilas hediondas de Zé Lombriga! Finalmente ele desce do carro e pede que eu siga a linha do trem. Olho para o céu e clamo: Oh Deus! Tire-me daqui! Apesar de empenar uma roda, rasgar um pneu, e danificar a suspensão do carro, rodando durante quinze minutos sobre a superfície lunar que margeia os trilhos do trem, consigo chegar ao bairro de Jardim América. Quando avisto o tão familiar galpão da Companhia Ferro e Aço, percebo que estou salvo, restando-me agora a penosa atitude de resgatar a tão amada paz, a tão sonhada esperança, e a tão nutrida fé, que nadam desesperadamente no meu coração, tentando não se afogarem no mar de lágrimas que descem torrencialmente dos olhos do “Mané”!