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Dr. João Evangelista
Gastro-enterologista

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Contracenando com a vida

Lá estava ele, sentado no banco da praça, indiferente a tudo o que se passava ao seu redor.

Na verdade já era o segundo assento em que ele se instalara. Achou por bem trocar de lugar, após ouvir o papo entre dois indivíduos que dividiam a acomodação anterior com ele:

Na minha terra, lá em Minas gerais, dizia um deles, existe uma fábrica de cachaça tão moderna que a cana de açúcar entra de um lado, e do outro lado já sai à garrafa, cheia, tampada, rotulada, prontinha para o uso!

Isso não é nada, afirmava o outro: Na minha terra, lá na Paraíba, existe uma fábrica de cachaça mais moderna ainda, que a cana de açúcar entra de um lado e do outro lado já sai à polícia prendendo o bêbado!

Alheio aquela conversa mirabolante, o calado senhor observa o boteco, do outro lado da rua, de onde um bêbado, postado a porta, azucrinava as beldades que por ali desfilavam.

Pousando os olhos numa linda morena, o cambaleante ébrio gritava: Que porcaria!

Alguns instantes depois, no momento em que uma loira estonteante passava na sua frente, ele repetia: Que porcaria!

Virando o rosto na direção de uma ruiva, abençoada com aquelas curvas generosas, ele tornava repetir: Que porcaria!

O dono do bar, irritado, questionava: Ah, bêbado! Como pode você dizer que todas essas maravilhosas deusas são porcarias?!

O bêbado arrematava: Que porcaria! Que porcaria que eu tenho lá em casa!

Ensimesmado, o anônimo cidadão não esboça reação alguma. Sentado estava, calado permaneceu.

Na verdade não fora capaz nem de sorrir, quando o tal bêbado cai numa pequena poça d água e começa gritar: Salve as mulheres e as crianças primeiro que eu sei nadar!

Seu alheamento também o isola de assistir quando o chapéu do bêbado voa para o chão e ele diz: Se não me abaixo, não te levanto. Se me abaixo, não me levanto. Adeus amigo! Separamo-nos aqui!

Todo ser humano pode e deve encontrar repouso na introspecção. Mas convém não se afastar muito tempo da realidade, afinal não é a primavera que traz as flores, são as flores que criam a primavera.

Por incrível que pareça, esse tipo de gente, por mais que se protege, acaba atraindo situações inusitadas.

Em dado momento, num lampejo de vigília, o citado cidadão percebe quando alguém senta ao seu lado e, cheio de trejeitos e muxoxos, tenta engatar um diálogo. Olhando de soslaio, blindado pelas suas homofobias, ele arrepia até a medula quando nota que o rapaz, já esparramado no banco, é um invertido; adjetivo xenofóbico que ele sempre usou.

Esconjuro! Pé-de-pato! Mangalô três vezes! Eu não acredito que esse cara veio aqui para me azucrinar!

Pois não demorou muito em ouvir a seguinte pergunta: Moço, o senhor me acha com pinta de homossexual?

Quem! Você? De jeito nenhum! O poderoso Nero era homossexual. O inesquecível Rock Hudson era homossexual. O magnífico Frederick Chopin era homossexual. O genial Marcel Proust era homossexual. O temido Adolf Hitler era homossexual! Mas, você! Você não! Você não passa de um veadinho de merda!

Passe bem! Foram essas suas últimas palavras antes de levantar, caminhar um pouco, e entrar na primeira porta que viu pela frente.

Entretanto, as circunstâncias continuaram atormentá-lo. Uma multidão de pessoas desembestou em sua direção. Em dado momento pararam todos. Alguém se adiantou e lhe pediu, por misericórdia, que arranjasse emprego para aquela gente. Mas ele não era político, embora compreendesse que eles só queriam ganhar o pão de cada dia. Estavam famintos. Mesmo assim, ele permaneceu impassível. A multidão se ajoelhou ali na sua frente. Algumas mulheres, com crianças no colo, chegaram a chorar. Ele continuou indiferente. Um ancião veio caminhando em sua direção e desmaiou. Alguém disse que, na verdade, o velhinho acabara de morrer. Ele nada falou. Seu semblante nada esboçou. O filho do idoso, vendo aquela cena, aproximou-se, ajoelhou-se diante do corpo do pai e caiu em prantos. Finalmente tudo aquilo tocou no seu coração, sensibilizando sua alma, tangendo seu âmago, e ele resolveu tomar uma atitude: saiu do cinema, na metade do filme, e voltou para a praça. Lá chegando percebeu que todos os bancos estavam vazios. Respirou aliviado e desabou sobre um deles. Mas, antes de retornar ao seu silencioso mundo, notou uma folha de papel abandonada sobre o assento. Alguém havia escrito uma crônica e sem finalizar largou ali. Ele desdobrou a folha e leu silenciosamente. Ele não sabia que o autor estivera ali o tempo todo, observando seu comportamento. Percebeu rapidamente que a predisposição para fantasiar pessoas, situações, casos, mundos diversos do mundo em que vivemos, é o ponto de partida do que mais tarde poderá se chamar inclinação literária. Concordando com suas impressões, ele resolveu concluir o texto, por conta própria, com as seguintes palavras: Dedico esta crônica a todos aqueles que, entediados, abandonaram sua busca pela verdade e agora se divertem perseguindo uma boa fantasia!

 

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O ninho de Pedro Palácios

Que coisa bonita é aquela ermida lá no alto da colina! Como enche os nossos olhos! Como se impõe diante de nós! Como guarda nossas lembranças! Como alastra nossas esperanças! Testemunho silencioso dos caprichos do tempo, aquele velho convento segue fitando as existências e as desistências do nosso povo, de nossa gente.  Ele assiste o estorricar das secas, o ribombar das tempestades, a faxina das inundações; enviados pelo Criador para alterar a monotonia do planeta. Ele permanece calado frente às mudanças dogmáticas, sociais e ideológicas albergadas pela mente daqueles que vicejam aos seus pés. Ele acompanha as dúvidas que brotam nos milhares de fiéis, aderindo aos novos modelos sociais que vão surgindo, abandonando milenares costumes. Lá, do alto, sabe por que sentimos medo. O culto, a fé, os dogmas, todos são tentativas para não ter medo. Quando o tempo dissolve alguns valores ou quando esses valores já não cabem mais no pensamento atual, muitos criam coragem para mudá-los. Entretanto, muda-se a roupagem da crença, jamais sua essência.

A profunda fé que atracou por estas plagas, viajando no coração dos portugueses, edificou aquele belo santuário a fim de perpetuar seu testemunho.

O homem que faz um pacto com o Criador deixa de ser homem e transforma-se em altar. Um dia ele morrerá, esperando que Deus continue lá.

Frei Pedro Palácios, um desses homens, talvez tenha dito:

Vede aquela vela, com sua pequenina luz que treme lá no alto, cheia de medo da escuridão?! Olhai-a, com admiração. É vista com certa dificuldade; arde solitariamente. Mandai que milhares de bocas soprem nela ao mesmo tempo e, mesmo assim, não conseguireis apagá-la. Nem sequer fareis a chama bruxulear. Essa chama continuará subindo ao céu, perpendicular e pura. Essa vela é a minha consciência. Sua chama ilumina a minha fé!

Embora meu coração enterneça com a iridescente luz desse servo de Deus, convém lembrar que muito antes dele aqui chegar, aquela colina já era sagrada.

Os nativos do nosso litoral chamavam aquela montanha de IBACAPÉ. IBACA significa céu. PÉ quer dizer caminho. Apressadamente, poderíamos deduzir que, para eles, aquela era a estrada que levaria ao céu.  Puro engano! Céu para o índio não era um lugar, mas um estado de espírito! Ibacapé poderia ser traduzido como: sentir-se no céu!

Igrejas, sinagogas, templos, mesquitas, muitas vezes são construídos como se ergue um castelo no ar. Sem o alicerce da fé, ele jamais conseguirá como fez o convento, se eternizar!