Contracenando com a vida
Lá estava ele, sentado no banco da praça, indiferente a tudo o que se passava ao seu redor.
Na verdade já era o segundo assento em que ele se instalara. Achou por bem trocar de lugar, após ouvir o papo entre dois indivíduos que dividiam a acomodação anterior com ele:
Na minha terra, lá em Minas gerais, dizia um deles, existe uma fábrica de cachaça tão moderna que a cana de açúcar entra de um lado, e do outro lado já sai à garrafa, cheia, tampada, rotulada, prontinha para o uso!
Isso não é nada, afirmava o outro: Na minha terra, lá na Paraíba, existe uma fábrica de cachaça mais moderna ainda, que a cana de açúcar entra de um lado e do outro lado já sai à polícia prendendo o bêbado!
Alheio aquela conversa mirabolante, o calado senhor observa o boteco, do outro lado da rua, de onde um bêbado, postado a porta, azucrinava as beldades que por ali desfilavam.
Pousando os olhos numa linda morena, o cambaleante ébrio gritava: Que porcaria!
Alguns instantes depois, no momento em que uma loira estonteante passava na sua frente, ele repetia: Que porcaria!
Virando o rosto na direção de uma ruiva, abençoada com aquelas curvas generosas, ele tornava repetir: Que porcaria!
O dono do bar, irritado, questionava: Ah, bêbado! Como pode você dizer que todas essas maravilhosas deusas são porcarias?!
O bêbado arrematava: Que porcaria! Que porcaria que eu tenho lá em casa!
Ensimesmado, o anônimo cidadão não esboça reação alguma. Sentado estava, calado permaneceu.
Na verdade não fora capaz nem de sorrir, quando o tal bêbado cai numa pequena poça d água e começa gritar: Salve as mulheres e as crianças primeiro que eu sei nadar!
Seu alheamento também o isola de assistir quando o chapéu do bêbado voa para o chão e ele diz: Se não me abaixo, não te levanto. Se me abaixo, não me levanto. Adeus amigo! Separamo-nos aqui!
Todo ser humano pode e deve encontrar repouso na introspecção. Mas convém não se afastar muito tempo da realidade, afinal não é a primavera que traz as flores, são as flores que criam a primavera.
Por incrível que pareça, esse tipo de gente, por mais que se protege, acaba atraindo situações inusitadas.
Em dado momento, num lampejo de vigília, o citado cidadão percebe quando alguém senta ao seu lado e, cheio de trejeitos e muxoxos, tenta engatar um diálogo. Olhando de soslaio, blindado pelas suas homofobias, ele arrepia até a medula quando nota que o rapaz, já esparramado no banco, é um invertido; adjetivo xenofóbico que ele sempre usou.
Esconjuro! Pé-de-pato! Mangalô três vezes! Eu não acredito que esse cara veio aqui para me azucrinar!
Pois não demorou muito em ouvir a seguinte pergunta: Moço, o senhor me acha com pinta de homossexual?
Quem! Você? De jeito nenhum! O poderoso Nero era homossexual. O inesquecível Rock Hudson era homossexual. O magnífico Frederick Chopin era homossexual. O genial Marcel Proust era homossexual. O temido Adolf Hitler era homossexual! Mas, você! Você não! Você não passa de um veadinho de merda!
Passe bem! Foram essas suas últimas palavras antes de levantar, caminhar um pouco, e entrar na primeira porta que viu pela frente.
Entretanto, as circunstâncias continuaram atormentá-lo. Uma multidão de pessoas desembestou em sua direção. Em dado momento pararam todos. Alguém se adiantou e lhe pediu, por misericórdia, que arranjasse emprego para aquela gente. Mas ele não era político, embora compreendesse que eles só queriam ganhar o pão de cada dia. Estavam famintos. Mesmo assim, ele permaneceu impassível. A multidão se ajoelhou ali na sua frente. Algumas mulheres, com crianças no colo, chegaram a chorar. Ele continuou indiferente. Um ancião veio caminhando em sua direção e desmaiou. Alguém disse que, na verdade, o velhinho acabara de morrer. Ele nada falou. Seu semblante nada esboçou. O filho do idoso, vendo aquela cena, aproximou-se, ajoelhou-se diante do corpo do pai e caiu em prantos. Finalmente tudo aquilo tocou no seu coração, sensibilizando sua alma, tangendo seu âmago, e ele resolveu tomar uma atitude: saiu do cinema, na metade do filme, e voltou para a praça. Lá chegando percebeu que todos os bancos estavam vazios. Respirou aliviado e desabou sobre um deles. Mas, antes de retornar ao seu silencioso mundo, notou uma folha de papel abandonada sobre o assento. Alguém havia escrito uma crônica e sem finalizar largou ali. Ele desdobrou a folha e leu silenciosamente. Ele não sabia que o autor estivera ali o tempo todo, observando seu comportamento. Percebeu rapidamente que a predisposição para fantasiar pessoas, situações, casos, mundos diversos do mundo em que vivemos, é o ponto de partida do que mais tarde poderá se chamar inclinação literária. Concordando com suas impressões, ele resolveu concluir o texto, por conta própria, com as seguintes palavras: Dedico esta crônica a todos aqueles que, entediados, abandonaram sua busca pela verdade e agora se divertem perseguindo uma boa fantasia!