Fuçando no baú da memória
Um dia desses, eu e Edílson Villaflor nos encontramos no Café do Brá, ali na Rua 24 Horas e tiramos a tarde pra relembrar os tempos antigos. Peraí. Tempos antigos? Falando assim, o leitor que não conhece a gente pode ficar com uma impressão errada, imaginando dois velhinhos de dentadura trocando reminiscências sobre Getúlio Vargas. Nada é nada disso. Embora esse selfservice chamado lulismo não seja muito diferente do velho getulismo a la carte, eu e o Villaflor estamos longe da terceira idade e o “nosso” tempo antigo ainda está bem vivo e relativamente próximo, estacionado nalguma esquina recente da memória, perto do cruzamento de 79 com 80, trinta anos atrás, quando nos conhecemos.
Vila Velha era um ovo trinta anos atrás. Devia ter o quê? Cem mil habitantes? Acho que nem isso. Na faixa litorânea dava pra contar nos dedos de uma mão o número de prédios com elevador. O Chalé Motel ainda ficava quase no meio do mato, perto de um bordel de quinta categoria chamado Recanto Cigano. A Gil Veloso só tinha asfalto da Champagnat pro Libanês. No sentido Itapuã, era areia pura. Não existia a Terceira Ponte. Nem a Segunda. A UVV não passava de um embrião noturno funcionando no Vasco Coutinho e chamar a polícia, coisa rara, era chamar o temido Delegado Osíres, tão eficientemente violento quanto barrigudo. Em janeiro de 79, quando montei meu primeiro consultório, éramos 34 dentistas na cidade inteira. Hoje somos, sei lá, talvez uns 700, mais que o dobro das 338 pessoas que são assassinadas em média por ano no município.
Mas sejamos justos. Para o bem ou para o mal, não foi só Vila Velha que mudou. O Espírito Santo mudou junto. O Brasil. O Mundo. Parece que até a natureza é diferente. Veja ocaso dos vulcões. Antigamente, quando um deles entrava em erupção, a gente sabia pronunciar o nome. Era Vesúvio, Santa Helena, Cracatoa. Há pouco tempo um vulcão da Islândia paralisou o tráfego aéreo europeu. Qual o nome dele? Tente ler em voz alta: Eyjafjallajoekull. Não tínhamos a Internet, é verdade, e muito menos computador. Meus vizinhos deviam varar a noite acordados xingando os infernais tlec-tlec da minha máquina de escrever Olivetti (que fim levou a coitada?). A guerra política também mudou. Em 80, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Mário Covas, Teotônio Vilela, lutavam bravamente contra o que restava de ditadura. Esses que estão aí hoje, pedindo nosso voto até uns dias atrás, lutam é pra acabar contra o que resta de ética e dignidade no país.
Em 80, encontrar quem falasse inglês era raridade e só fazia turismo no exterior quem tinha muita grana. A moda (ou necessidade) de trabalhar nos EUA ainda engatinhava e quem era de Valadares, morava em Valadares, não em Boston. Porta que abre sozinha já existia. Na nave Enterprise de Jornada nas Estrelas. Telefone? O fixo, que nem chamava fixo, só telefone mesmo, custava os olhos da cara e demorava anos pra conseguir uma linha. Celular, só lembro do que o James Bond usou em Moonraker. Duas da madrugada, a TV saía do ar. DVD? Que palavrão é esse? Filme, a gente via no cinema. Música, comprava o disco. Em compensação, arrá-rá!, ninguém deixava de transar com medo da AIDS! Só que não tinha Viagra.
Pois é, a medicina é outro negócio que melhorou muito. É hospital de luxo, remédio pra isso, remédio praquilo, implante, transplante... Ficou de um jeito que a pessoa só morre se quiser. Ou se tiver o desplante de não poder pagar o tratamento, porque o SUS não tem vaga pra todo mundo e plano de saúde virou arapuca de enganar trouxa. Falando em enganação, quem é que nasceu depois dos 80? O 0800, esse grande vilão contemporâneo que funciona como uma perfeita fábrica de loucos. Quem comete o desatino de discar prum 0800 só preserva a sanidade mental se correr pro analista assim que largar o telefone. Mas não sei não. Acho que daqui a pouco inventam 0800 de analista também.
Tá na hora de fechar a coluna, mas como é uma delícia remexer em baú de velharias, prometo voltar ao assunto na próxima edição. Só queria, antes do ponto final, lembrar ao leitor outra coisa que não mudou e que é a Justiça.Os salários continuam entre os mais altos do funcionalismo público, as férias as mais prolongadas, o corporativismo minha-nossa-senhora e a morosidade Jesus-nos-acuda! O lado bom é que nossa Justiça continua um baluarte de moralidade. Nunca tivemos, não temos e jamais teremos corrupção sistemática no judiciário brasileiro, provavelmente um dos mais íntegros do planeta!