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Ponto de Corte (As agruras de um figurante desavisado)

Quando alguém me pergunta se trabalhar com cinema no Espírito Santo rende grana, vou logo respondendo que não rende nada, nadinha, mas como diz meu querido amigo Celsão, vale a pena, ô se vale!  Com a palavra, Celsão Rodrigues, gênio da publicidade capixaba e, de quebra, pai de Virgínia Jorge, nossa mais doce e premiada cineasta:

Pois é, sua filha está na produção do filme, você é amigo do tio do diretor ou então esbarrou num conhecido a quem deve favores. O motivo não importa.  De repente surge o convite e você se vê compromissado a dar sua contribuição (gratuita, é claro) ao cinema capixaba.

Sábado, sete da manhã, no supermercado X você deve comparecer (por meios próprios), todo vestido de azul para fazer figuração num filme sobre o qual ignora completamente qualquer detalhe, exceto estar lá na hora certa e de roupa azul. Quando perguntei por que a roupa azul, disseram que eu seria “ponto de corte”, sem me explicarem direito o que é isso, parece que tem a ver com a edição final. De qualquer forma me senti importante, não seria um figurante qualquer, seria uma referência de edição! Claro que o orgulho foi passageiro. Nada de nobre resiste a um despertar tipo seis da matina, de ressaca, numa manhã de sábado. Mas na hora marcada eu estava lá. Eu, a equipe técnica, os atores e outros como eu, reles figurantes. Ficamos num canto esperando nossa vez, todos de pé, orientados a manter silêncio. Por que o silêncio eu não entendi, pois durante quase três horas a única coisa que aconteceu foi eletricistas montando luz e fazendo barulho, claro. Achei edificante essa primazia hierárquica para o barulho dos mais importantes.

As onze e quarenta e cinco (cheguei pontualmente as sete, lembram?), avisaram que a filmagem ia começar, cobriram meu rosto de pancake (ainda trago resquícios de pó de arroz na cara, de modo que passei a torcer pelo Fluminense) e me orientaram sobre meu papel, que seria passar pelo corredor do supermercado, recolhendo coisas e colocando num carrinho até cruzar com uma mulher pretensamente boa. Aí eu devia parar e virar o rosto como se estivesse vendo sua bunda. Achei a coisa meio machista, mas... vá lá, era o personagem, poderia explicar assim para as minhas feministas.

Repeti a ação exatas 42 vezes, preocupado em pegar sempre as mesmas coisas nos mesmos lugares das mesmas prateleiras para ajudar na continuidade do filme. Estava tão concentrado nisso que no dia seguinte voltei àquele supermercado e comprei exatamente os produtos com os quais me acostumara (a maioria continua no armário até hoje, pois ainda não decidi o que fazer com a papinha de neném, as chupetas e o creme para cabelos secos, eu que sou sozinho e careca). Às três e vinte da tarde ouvi finalmente o “corta” seguido de um papo tipo amante inseguro entre o diretor e o fotógrafo: - “Foi bom pra você?” Parece que sim, foi bom, de modo que terminamos.   “Todos para o almoço!” gritou alguém da produção, só que esse todos valia apenas para os que continuariam na filmagem, o que me excluía e aos outros figurantes. Fui embora cansado, com fome, mas satisfeito, certo de ter cumprido uma missão.

Um ano depois, quando já tinha até esquecido a aventura, vi no jornal que o tal filme ia estrear. Fui lá conferir, mas fiquei quietinho no fundo do cinema, pois não ia pagar mico de pretenso grande ator. Claro que sabia que seria reconhecido, então fui ensaiando um bom sorriso amarelo enquanto aguardava ansioso pela minha cena, meus 10 segundos de notoriedade. Dali a pouco reconheço na tela o corredor de supermercado que serviu de cenário para minha estréia cinematográfica. Olha lá, é o meu pé! Reconheço o sapato (quem mais estaria de sapato azul num supermercado numa manhã de sábado?). Corte rápido e a câmera foca no galã fazendo compras. Fico esperando a câmera voltar para mim, num close up triunfal.  Espero, espero, espero, até que aparece FIM na tela.

Precisei passar por tudo isso para entender o que é ponto de corte. Acho que preciso ler mais sobre cinema. Mas valeu a pena.

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